Eu, eu mesmo e meu diagnóstico

É assunto polêmico mas frequente:

  • “Doutor, qual meu diagnóstico? Pode me dizer, eu aguento!”
  • “Supervisor, como vou saber se esse paciente é bipolar ou border?”
  • “Professor, o que se faz quando um paranóico não relata o que lhe acontece?”

 

De fato, todos buscamos saber quem somos, e quem aqueles que nos cercam também são. Infelizmente, não é tão simples quanto juntar uma série de clichês.

 

 

Com rótulos ou sem, já bebeu água hoje?

Peguemos um exemplo concreto, o grande mal do século: a depressão. De acordo com o manual americano de psiquiatria, o chamado DSM, em sua quinta edição revisada, existem nove critérios para a depressão. Para a pessoa ter este diagnóstico, precisa ter cinco destes, sendo que pelo menos um destes deve ser o critério 1 ou o critério 2. Assim, é possível que um sujeito tenha os critérios 1, 3, 4, 5 e 6 (leia-se: humor deprimido, alteração de peso – neste caso, perda -, redução de atividade física e mental, fadiga e sentimentos de inutilidade). Seu vizinho também recebe o diagnóstico – mas este apresenta os critérios 2, 3, 7, 8 e 9 – para este, perda de interesses e prazeres, dificuldade de concentração, idéias recorrentes sobre morte e, repetindo o critério 3, alteração de peso, mas, neste caso, com ganho.

 

Isto significa que temos dois quadros com nenhuma sobreposição de sintomas ganhando o mesmo diagnóstico. Fora com os manuais! Farsantes! Picaretas!

 

Não, de maneira nenhuma. Os manuais são úteis. Os quadros descritos, que são agrupamentos estatisticamente comuns, nos ajudam a pensar sobre o funcionamento de alguns pacientes e permitem algum grau de agrupamento de sintomas que facilita a pesquisa sobre genética, tratamento, entre outros.

Mas é claro que, em última instância, não apenas a depressão – ou a bipolaridade, esquizofrenia, paranóia, desregulação emocional, enfim – mostram-se distintas nas diversas pessoas que tem o diagnóstico, não apenas nos exemplos acima, mas em todos os quadros. Pois estamos falando de pessoas, e a conversa fica mais complicada quando lembramos disto. A depressão de cada paciente é influenciada pelo estilo, pelas memórias, pela maneira de ser de cada um.

 

Além disto, é claro, existem sintomas avulsos – os critérios diagnósticos utilizados, como por exemplo a tristeza. Na verdade, os sintomas podem sempre ser observados individualmente e, se conhecemos bem os tratamentos – tanto psicoterápicos quanto biológicos, etc – podemos e devemos individualizar o tratamento pensando nos sintomas individuais.

 

Ter algum sintoma depressivo avulso frequentemente não demanda uma abordagem mais contundente. Ter muitos, certamente o faz. A idéia de ter critérios diagnósticos – ou seja, sintomas avulsos – e um número mínimo destes para “fechar um diagnóstico” é uma tentativa de estabelecer um ponto de corte para esta decisão de tratamento, apenas.

 

Lembremos que, conforme as edições dos manuais mudam, os critérios mudam. Isto reflete nosso entendimento sobre os quadros, mas também informa a sociedade em contrapartida. A diminuição ou aumento da rigidez para fechar certos quadros aumenta ou diminui a quantidade de pessoas que se enquadram. Não é a toa que muitas pessoas passaram a se entender como estando no espectro autista recentemente: nosso entendimento se tornou mais sutil e os critérios, assim, mais inclusivos. De certo modo, isso também determina uma visão que, subjetivamente ou culturalmente, uma pessoa que não era autista ontem, hoje o é.

 

Quem sabe o que nos reserva o amanhã?

 

Vamos retomar a conversa sobre a identidade: “eu sou X”, sendo X um quadro destes diagnósticos. Perceba como isso soa diferente de “eu sou uma pessoa que tem um quadro X”. Ainda, discriminamos os sintomas avulsos: “eu sou uma pessoa que, em determinada circunstância N, tendo a sentir Y, pensar B e agir K”.

 

É um exercício apenas, e não é dizer que cada uma dessas maneiras de descrever esteja equivocada. Mas a primeira delas certamente remete ao que a Terapia de Aceitação e Compromisso entende como “self como conteúdo”: eu sou aqueles rótulos que carrego.

 

Todavia existem outras formas de ver a si mesmo que facilitam ver-se não como estes rótulos e sim ver o contexto onde esses comportamentos privados e públicos (pensamentos, emoções, gestos, etc) se manifestam.

 

Assim, uma pessoa pode dizer que é deprimida. Ou pode dizer que tende a responder a estímulos negativos com tristeza, que ao encontrar sua família tende a lembrar-se daqueles que já perdeu, etc. Uma maneira de ver não é mais verdadeira ou correta que a outra. Mas certamente a última me permite ver a mim como muito maior do que um diagnóstico.

 

O que nos leva a refletir – o que um diagnóstico fala a respeito de quem eu sou? Quer dizer – antes de eu receber meu diagnóstico eu era uma pessoa, agora que tenho este diagnóstico, algo mudou? É uma conclusão tão estupefaciente como dizer que, agora que sei que tenho um metro e oitenta e dois centímetros, sou alto ou baixo. Minha altura não mudou!

 

Claro que a linguagem técnica pode ser útil para a equipe de cuidado discutir entre si e tomar decisões sobre o tratamento – você sabia que para quadros depressivos leves e moderados a psicoterapia tem mais evidência de resolver o problema do que a medicação? Assim como ler sobre características do quadro podem trazer um alívio muito grande a respeito de entendimento de um aspecto seu, ou melhor, de vários pequenos aspectos seus. Também de saber que muitas pessoas já tiveram vidas plenas com a mesma situação (e outras nem tanto, o que deveria nos motivar a buscar ajuda e manter a ajuda).

 

Em suma, não estou dizendo que os diagnósticos são feios, errados, ou bobalhões. São ferramentas úteis para decisões clínicas e psicoeducação. O que quero dizer com isso é que, quando condicionamos nossa identidade e mesmo nossa experiência a um diagnóstico, nosso universo fica demasiado restrito, pequeno. Carreguemos nossas idéias com leveza! Rumo a uma liberdade relativa.

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Sobre o Autor
Emmanuel Kanter

1 comentários em “Eu, eu mesmo e meu diagnóstico”

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