Uma vida no limite: a desregulação emocional e suas origens

Você provavelmente conhece alguém que tem reações emocionais muito intensas, com uma tal dificuldade de inibir comportamentos ligados às emoções que, com frequência, faz coisas que prejudicam a si mesmo e às outras pessoas. Pessoas que, apesar de terem boas intenções e serem capazes de ter clareza sobre as relações entre suas ações e as consequências que elas produzem, acabam agindo de maneira impulsiva e explosiva com frequência, muitas vezes sentindo intensa culpa e raiva de si mesmas posteriormente. São pessoas que, algumas vezes, vão a extremos como agredir fisicamente outras pessoas ou a si mesmas ou até tentar suicídio. Seu padrão de relacionamentos interpessoais pode parecer algo caótico, instável e pode ser que vivam em relações intensamente conflituosas. Pode ser que já tenha ouvido essa pessoa relatar sentimentos de vazio muito intensos, e pode parecer que ela tem grande dificuldade em se reconhecer, saber quem é, em sustentar sua própria identidade e uma noção estável de si mesmo sem ser pautada pelo que o ambiente externo impõe. E, além disso, essas pessoas podem tender a pensar a realidade e se relacionar com as coisas e com as pessoas em termos dicotômicos, num estilo de pensamento polarizado, do tipo oito ou oitenta: “ou algo é totalmente bom ou é totalmente ruim”. Provavelmente você conhece algumas pessoas com várias dessas características, inclusive algumas pessoas com todas elas. Você que está lendo, inclusive, pode ser que se reconheça nessas características. Elas são bastante comuns, mas tendem a estar associadas a uma vida com muito, muito sofrimento. Algumas pessoas têm dificuldades emocionais que levam a problemas comportamentais que, por sua vez, afetam a qualidade de vida delas e também das pessoas com quem convivem.

Não raro, as pessoas que têm essas características podem receber um diagnóstico de transtorno de personalidade borderline, ou transtorno de personalidade emocionalmente instável, ou ainda outros diagnósticos de transtornos  de personalidade como antissocial ou histriônica, e podem ter outros diagnósticos também como transtorno bipolar, depressão recorrente, compulsão alimentar etc. Podem também nunca ter recebido e jamais virem a receber qualquer diagnóstico, mas ainda assim, vivenciarem um padrão de experiências internas e de comportamentos que as deixa em um nível de sofrimento que chega ao limite do tolerável – e o ultrapassa às vezes.

A partir do ponto de vista de uma terapia comportamental chamada DBT (Dialectical Behavior Therapy – Terapia Comportamental Dialética), o padrão de comportamento dessas pessoas pode ser descrito como desregulação emocional. E a descrição e o entendimento desse padrão de comportamento, na DBT, embasa um programa de tratamento que permite que essas pessoas tenham uma vida melhor, com sentido, e que lhes permite – às vezes pela primeira vez em toda a vida – considerar que vale a pena viver.

A desregulação emocional, consiste na ocorrência de dificuldades para reconhecer e legitimar as próprias experiências emocionais; dificuldades para modular a intensidade, frequência e expressão das experiências emocionais de uma maneira coerente com o contexto e com a manutenção do bem-estar ou mesmo integridade física; e dificuldades para organizar e administrar as próprias ações de um modo não dependente do humor ou das oscilações emocionais. A DBT propõe que a desregulação emocional está relacionada à ocorrência de dificuldades com a autorregulação em diferentes domínios: a desregulação comportamental (impulsividade, dificuldade de inibir comportamentos mesmo quando geram problemas e de escolher cursos de ação coerentes com os objetivos e valores); a desregulação cognitiva (visão polarizada da realidade e dificuldades para manter linhas de raciocínio complexas, especialmente quando em intensa ativação emocional); a desregulação interpessoal (padrões de relacionamentos instáveis ou caóticos, com alta incidência de conflitos intensos e às vezes violentos, frequentemente havendo esforços exacerbados para evitar a experiência e os sentimentos de rejeição); e a desregulação da autoimagem (ausência ou grande limitação da experiência de si mesmo como tendo uma identidade estável, com contornos claros – sendo a noção de si fortemente dependente de variáveis externas e por consequência altamente instável – associada à experiência de um sentimento de vazio interno vivenciada com grande desconforto). Até aqui, estamos nomeando aquelas características que foram mencionadas no primeiro parágrafo. Mas a DBT não se propõe somente a criar novos nomes ou rótulos para o que as pessoas vivem, ela também busca organizar esses fenômenos de uma forma coerente, que permita gerar uma teoria sobre o que os gera e mantém, e assim, propor estratégias para intervir sobre eles.

Nesse ponto de vista, entende-se que os os déficits na autorregulação emocional são primários, e que os demais prejuízos da autorregulação decorrem dessas dificuldades com o manejo das emoções. Aqui, temos então uma organização daquelas características descritas anteriormente que permite que se veja a relação entre elas. Além disso, A DBT propõe uma compreensão teórica da origem dessas dificuldades. Essa compreensão, ao mesmo tempo em que, ao facilitar o entendimento, ajuda a aliviar os problemas da incompreensão, culpabilização ou vitimização que podem surgir diante de vivências emocionais e comportamentais tão intensas, ela também permite estabelecer um caminho e estratégias eficazes para a mudança desses padrões que levam a tanto sofrimento. Essa compreensão teórica é conhecida como teoria biossocial, e ela propõe que a desregulação emocional é um fenômeno que emerge a partir da interação entre dois grandes fatores: de um lado, um conjunto de vulnerabilidades biológicas (do organismo, da pessoa) associadas a uma grande sensibilidade às emoções e elevada impulsividade; e por outro lado um conjunto de características do ambiente em que as pessoas vivem e viveram (família, instituições, sociedade) que levam à invalidação da experiência emocional e dificuldades com a autorregulação. Nessa teoria, entende-se que nem um nem outro fator é preponderante, mas sim que a interação constante entre ambos é que gera as dificuldades. Algumas vulnerabilidades podem ter uma origem genética, porém o ambiente pode contribuir para que se ativem essas vulnerabilidades e a própria ativação emocional e impulsividade podem levar a reações do ambiente que vão aumentar a frequência de respostas problemáticas do indivíduo, e assim sucessivamente.

Ao propor uma teoria que explica como surge e se mantém a desregulação emocional, a DBT oferece esperança às pessoas que vivenciam essa condição – e, não menos importante, às pessoas que convivem com elas – de que é possível construir uma vida melhor. E isso é importantíssimo, uma vez que são pessoas com um risco de suicídio extremamente alto, e que frequentemente passam a vida em um estado de grande desesperança, o que é compreensível dado o intenso sofrimento que vivem cotidianamente.

A teoria biossocial propõe que algumas pessoas têm mais sensibilidade às emoções que outras, e que quando essas emoções ocorrem a essas pessoas mais vulneráveis, elas também duram mais tempo. Além disso, os gatilhos que disparam essas emoções podem ser coisas tão sutis que muitos nem percebem que estão ali, e pode até parecer aos outros que aquelas emoções ou reações vieram do nada, ou não fazem sentido para a situação.

Assim como uma pessoa com algum tipo de alergia tem uma espécie de desregulação do seu sistema imunológico, que o faz se ativar em intensidade ou duração excessiva diante de certos estímulos, também uma pessoa com vulnerabilidade emocional tem uma ativação demasiado intensa ou duradoura de seu “sistema emocional” diante de certos estímulos. Seguindo na analogia, assim como, numa pessoa alérgica a magnitude do estímulo (a quantidade de pólen no ar, por exemplo, ou de amendoim em um alimento) pode ser tão pequena que o faça ser imperceptível a alguém não alérgico, a magnitude do estímulo que desencadeia a reação emocional em pessoas com vulnerabilidades emocionais pode ser tão reduzida, que aos outros pode parecer que a pessoa reagiu “do nada” ou simplesmente explodiu.

Quando há esse tipo de interpretação pelas outras pessoas, é que aparece então uma importante característica do ambiente que promove experiências de invalidação: a dificuldade em compreender ou a tendência a julgar ou rotular como inadequadas as experiências emocionais que pessoas sensíveis vivenciam. Isso ocorre porque é realmente difícil compreender quando não se tem essa mesma sensibilidade. Da mesma forma, as pessoas, grupos e discursos sociais em meio aos quais as pessoas com desregulação emocional convivem – ou seja, as pessoas que constituem seu ambiente –   muitas vezes fazem algumas exigências que são incompatíveis com o que a pessoa dá conta. Por mais que demonstrem seu desejo de que melhorem, incentivando a mudar coisas em suas vidas, por exemplo, o fazem de um modo pouco efetivo: sem mostrar os passos que as permitirão chegar ao estado desejado, não dando modelos, ou ainda, não reconhecendo que o caminho e os métodos não são iguais para todos. Um exemplo é responder a uma pessoa que está demonstrando tristeza ou pesar pedindo-lhe para não ficar assim, ou responder a uma pessoa que está em um momento de muita raiva para se acalmar, mas em nenhum dos casos dar sugestões concretas ou oferecer apoio para executar ações específicas que levem a esse desfecho. Outro elemento que contribui para surgir e se manter a desregulação emocional é que a pessoa com uma vulnerabilidade emocional pode ter se desenvolvido em ambientes que tenderam a lhe atender quando as manifestações e expressões emocionais eram as mais extremas. Ocorre que esses ambientes acabam por reforçar, isso é, aumentar a probabilidade de que nas próximas vezes que a pessoa tem alguma necessidade, tenda a expressá-la de forma intensa, extrema até, pois assim é que aprendeu que há mais chance de ser ouvida.

Assim, nessa interação entre um lado biológico que conforma uma predisposição a sentir as coisas com intensidade, e agir de forma mais impulsiva; e um lado social que tende a reforçar condutas mais extremas e acaba por não conseguir legitimar as experiências que a pessoa vive e ensiná-la formas eficazes de lidar com o que sente, gera-se um estado de desespero constante. Nesses casos, as tentativas de suicídio, abuso de substâncias, condutas alimentares extremadas e outros comportamentos de risco surgem como respostas viáveis para lidar com a intensidade desse desespero, e sua predominância leva a uma vida com cada vez menos sentido. Nessa teoria, entende-se que os comportamentos extremos que as pessoas com desregulação emocional podem vir a apresentar podem ser formas como elas aprenderam ao longo da vida a enfrentar experiências muito dolorosas. São tentativas de lidar com as emoções muito intensas, ou ainda, essas ações podem ser as próprias consequências de vivenciar emoções muito intensas.

O aspecto transacional é algo muito interessante e importante nessa teoria, pois faz dela um modelo teórico menos estigmatizante, que não culpabiliza nem vitimiza, uma vez que reconhece o papel de vulnerabilidades biológicas do indivíduo e de arranjos ambientais externos ao indivíduo, e principalmente, enfatiza a importância da interação entre indivíduo e ambiente na gênese e manutenção dos problemas. Assim, a teoria biossocial da desregulação emocional sustentada pela DBT chama a todos à responsabilidade pela construção de melhores condições de vida. Inclusive, dois dos vários princípios que orientam a prática da DBT demonstram isso claramente: a ideia de que as pessoas estão fazendo o melhor que podem, mas que ainda assim precisam aprender novas estratégias para que possam fazer melhor; e a ideia de que as pessoas podem não ser culpadas pelas coisas difíceis que lhes acontecem, e ainda assim elas têm a responsabilidade de agir de modo efetivo com o que lhes ocorre, a fim de construírem a vida que querem viver.

A boa notícia diante disso tudo é que é possível aprender as habilidades necessárias para lidar com essas características e construir uma vida melhor. Essas habilidades são aprendidas de forma não estruturada ao longo da vida pela maioria das pessoas, mas em alguns casos, precisamos de uma estrutura de ensino justamente porque não foi possível aprender espontaneamente devido àquelas características de invalidação que ocorrem no ambiente.

A DBT consiste um programa estruturado nesse sentido, que é baseado em pesquisas bastante consistentes sobre regulação emocional e sobre a efetividade de diferentes estratégias terapêuticas e, que tem se mostrado eficaz para reduzir os comportamentos de risco e ajudar as pessoas a construírem vidas que lhe façam mais sentido. Você, que veio até aqui e que se identificou com alguns temas tratados, seja por ver elementos de desregulação emocional em você mesmo ou em pessoas com quem você se importa, pode gostar de saber que o CEFI Contextus já vem oferecendo tratamento nessa abordagem há alguns anos, e que estamos de portas abertas para recebê-lo, e ajudar a construir uma vida que valha a pena!

 

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Sobre o Autor
Lucas A Schuster de Souza

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