A solidão das pessoas dessas capitais

Um preto, um pobre, uma estudante, uma mulher sozinha

Blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais. 

garotas dentro da noite, revólver, cheiro a cachorro

os humilhados do parque, com os seus jornais

Carneiros, mesa, trabalho, meu corpo que cai do oitavo andar

E a solidão das pessoas dessas capitais

Belchior – Alucinação

 

Eu tenho medo de abrir a porta

Que dá pro sertão da minha solidão

Apertar o botão: cidade morta

Placa torta indicando a contramão

Faca de ponta e meu punhal que corta

E o fantasma escondido no porão

Belchior – Pequeno Mapa do Tempo

 

A solidão dói. A solidão machuca. A solidão mata. Solidão, rejeição, vergonha, isolamento, variações sobre um mesmo tema de sofrimento. Talvez o pior de todos eles. O medo de estar só, verdadeiramente só, profundamente só, desumanamente só. De alguma maneira, podemos encontrar a desconexão na maior parte das experiências difíceis porque passamos ao longo da vida. A hipótese que apresento aqui é de que ela nos abala tão profundamente porque a conexão é a característica mais marcante que nos define como humanos. E nesse sentido, defendo que, se quisermos realmente construir melhores condições de vida para as pessoas, devemos atentar para as variáveis que interferem na nossa capacidade de estarmos verdadeiramente juntos, de conectar e cooperar uns com os outros. 

Muitos animais são sociais, especialmente os primatas. Orangotangos, bonobos ou os gorilas. Todos têm notáveis capacidades e preferências para cooperação. Humanos, no entanto, se destacam entre os primatas por serem extremamente sociais. Evoluímos para sermos a espécie mais conectada dentre os primatas. Um exemplo interessante que ilustra esse processo evolutivo está na anatomia dos nossos olhos. O tamanho da nossa esclera, a parte branca do olho, em relação à íris, é muito maior do que nos outros primatas. Isso facilita que reconheçamos exatamente para onde outra pessoa está olhando. Enquanto nos outros primatas o comportamento de um filhote virar a cabeça para a mesma direção que sua mãe é comum e um traço de cooperação, nós humanos vamos mais longe. Além de seguir a orientação da cabeça, somos capazes de reconhecer para onde apontam os olhos e seguir o olhar de outro humano com grande precisão. Isso nos permite ter um nível de atenção compartilhada incomparável a outros animais. A atenção compartilhada é o fenômeno de dois ou mais indivíduos compartilharem um foco de atenção, e é uma habilidade essencial para o desenvolvimento da linguagem. 

Tomemos um outro fato de nosso funcionamento orgânico para ilustrar o quão importante a conexão é para nós humanos: os efeitos do olhar. Quando um bebê percebe o olhar de um adulto direcionado a ele, imediatamente seu corpo inicia a liberação de endorfinas, substâncias fortemente relacionadas a sensações de prazer. Da mesma forma, um adulto ao olhar nos olhos de um bebê humano tende a iniciar o mesmo processo de liberação de endorfinas. Desde que nascemos, já estamos programados organicamente para viver em um mundo construído cooperativamente com outros membros da nossa espécie. Estamos programados biologicamente para termos nossa sobrevivência e nossa felicidade condicionadas pela conexão com outros humanos. Um outro fato que ilustra essa condição, mas este pelo outro lado da moeda, é que o isolamento social é o maior preditor de morte precoce conhecido, tendo mais impacto até mesmo que o uso de tabaco ou colesterol elevado. Quanto menos conectados, não só somos menos felizes, mas também morremos mais cedo.

Ao longo da história da nossa espécie, fomos sendo moldados pela relação com nosso ambiente de modo a nos tornarmos realmente dependentes das relações que estabelecemos uns com os outros. Desde o nascimento e os primeiros momentos de vida, através de  processos bem instintivos, somos essa manifestação da interdependência. Mas com o desenvolvimento da linguagem, processo essencialmente interpessoal que sustenta e é sustentado por nossa vinculação à cultura humana, praticamente todas nossas experiências passam a ter a marca da conexão. Nossa consciência de nós mesmos se desenvolve a partir da consciência do outro. Assim como não há antes sem depois, assim como não há aqui sem ali ou lá, também não há eu sem outro. Só há ‘eu’ e as coisas que eu faço e sinto se há outro que me serve de referência, de testemunho, de comparação, de objeto. 

Se nossa consciência de nós mesmos está tão intimamente relacionada à consciência do outro, é natural que nosso sofrimento esteja também fortemente associado à nossa experiência dessa relação com os outros. Para ilustrar, tente lembrar de algum momento que você sentiu raiva, tristeza, medo ou desespero. Olhe bem para a experiência, os pensamentos, as imagens que lhe vinham à mente naquela ocasião. É muito provável que, com um olhar atento, você consiga ver a sombra da desconexão nas mais variadas formas aparecendo naquela experiência. Por exemplo, na raiva, a vontade de ser respeitado talvez. Na tristeza, talvez haja a perda de contato com alguém importante, ou de algo que alimentava em você um senso de valor próprio perante os demais. No medo, é bem possível que a ameaça ou a experiência mesma de estar só e desamparado tenha um papel importante. 

A desconexão é tão poderosa em incutir sofrimento, que pode ser vista como um importante fator na ocorrência de comportamentos extremamente violentos, como homicídios, suicídios e assassinatos em massa. O sociólogo Émile Durkheim no final do século XIX descrevia o suicídio como um fato social decorrente de diferentes contextos em que a coesão social é problemática: anomia, opressão extrema, crenças e deveres impostos de forma absoluta, ou não pertencimento. As trágicas ocorrências de assassinatos em massa que anualmente se acumulam às centenas nos Estados Unidos e que começam a ser parte da realidade em outros lugares do mundo, inclusive o Brasil costumam estar relacionadas a experiências muito profundas de desconexão e ostracismo. Resistindo ao primeiro impulso de afastar e desumanizar uma pessoa que comete um ato tão terrível como um homicídio ou assassinato em massa, podemos tentar compreender quão profunda é a desconexão que faz um humano, com todas suas determinações biológicas para cooperar e conectar, golpear com uma lâmina ou projétil o corpo de outro humano. O ódio que aperta o gatilho, que declara guerra, que golpeia com a faca ou machado é expressão trágica de uma miríade de necessidades não atendidas de conexão interpessoal.

E o que podemos fazer com isso? Como aumentar a conexão social e criar contextos que promovam um senso de pertencimento? A resposta não é simples e nenhuma resposta pode se restringir a um nível de análise unicamente. Há elementos macrossociais e políticos que atravessam nossa vidas e que facilitam a experiência de desconexão: a desigualdade social, a precarização das condições de trabalho; redução ou restrição de acesso aos espaços públicos de convivência, discursos xenofóbicos ou intolerantes são alguns exemplos. Há também elementos que nos tocam no nível individual, da maneira como interagimos em relações próximas. Pela ausência de condições propícias, muitas pessoas acabam não aprendendo como estar com outra pessoa de forma não-defensiva, como compartilhar suas experiências de forma vulnerável e como prover um ambiente interpessoal seguro à expressão de vulnerabilidade. Esses são alguns exemplos de comportamento que no nível micro, das interações cotidianas, podem abrir caminho à promoção de experiências de conexão e gerar relacionamentos nutridores. A interação entre esses níveis é complexa e se quisermos aumentar a felicidade e gerar melhores condições de vida às pessoas em geral, temos de estar preparados para intervir em cada um deles e observar atentamente o impacto de um no outro. Na psicoterapia, a consideração de variáveis culturais, de contextos sociais amplos e de múltiplas fontes de determinação no comportamento individual, conhecida como competência cultural do terapeuta é um fator importante para promover um espaço em que haja conexão e que seja capaz de atenuar os efeitos da desconexão que ocorre em outros contextos da vida do cliente. 

Da mesma forma, o psicoterapeuta deve saber trabalhar no nível da interação um a um. Isso envolve abrir-se de modo vulnerável e prover segurança à exposição do cliente a fim de fomentar o desenvolvimento de habilidades que ao longo de sua história ele ou ela pode não ter tido oportunidade de aprender. Junto disso, temos a clareza quanto a valores e aspirações pessoais, e a ênfase em promover a ação alinhada a valores pró-sociais. Todos esses são elementos importantes que vão auxiliar na transformação de contextos de desconexão e sofrimento em direção a uma vida que não só vale a pena viver, mas vale a pena compartilhar. 

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Sobre o Autor
Lucas A Schuster de Souza

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