Eu sou uma pessoa que gosta de reality shows, pra mim é uma atividade de lazer e noto que é uma atividade que aumentou de frequência na minha vida desde o início da quarentena. E não fui só eu! Uma pesquisa realizada pela revista Veja reportou um aumento na audiência da TV fechada de 25% em abril, desde que iniciou a pandemia no Brasil. Ainda, uma reportagem publicada na UOL por Maurício Stycer sobre essa edição do reality A Fazenda apontou um aumento de 50% no número de telespectadores.
Eu acho que os reality shows nos proporcionam várias discussões importantes relacionadas a diversos tipos de preconceitos como racismo, machismo, homofobia, psicofobia, entre outras. Também percebo que é um contexto bem rico para falarmos sobre uso de habilidades (ou falta de), pois podemos observar nos participantes as dificuldades para regular emoções, ter habilidades interpessoais, etc. E isso não é uma dificuldade exclusiva dos participantes de reality shows, são dificuldades que muitos de nós compartilhamos. A diferença é que ali as pessoas estão confinadas e sendo gravadas 24h por dia. Logo podemos assisti-las quando estão utilizando uma habilidade que pode não ser muito efetiva, diferentemente de nós que não temos a possibilidade de assistir novamente os comportamentos que realizamos, na maioria das vezes.
Primeiro eu quero deixar bem claro que eu estou falando aqui do ponto de vista de telespectadora porque nunca participei de um reality show para dar um visão sobre como é estar lá dentro. Uma habilidade que eu acho que podemos treinar ao assistir um reality show é descrever e verificar os fatos. Essas habilidades foram propostas por Marsha Linehan e podem ser vistas com mais detalhes nas referências sugeridas no final do texto. Descrever os fatos significa descrever a cena conforme o que pode ser observado pelos meus 5 sentidos: o que eu vi? O que eu senti de cheiros? O que pude sentir com o meu tato? O que pude escutar? Que gostos senti? Uma dica para nos ajudar a descrever é pensar nos fatores: quem, onde, quando. Quando aconteceu a situação? Quem estava lá? O que eu estava fazendo que podia ser observado de fora? O que os outros estavam fazendo que podia ser observado de fora?
Descrever é uma habilidade essencial para podermos verificar os fatos que diz respeito a verificar o que efetivamente ocorreu e o que é decorrente de interpretações e julgamentos que eu fiz sobre a situação. Por exemplo, vamos imaginar uma situação em que eu falo para uma pessoa “Eu gosto de reality shows” e a pessoa franze a testa, arregala os olhos e não fala nada. Daí eu começo a sentir muita vergonha porque a pessoa me julgou pelo fato de eu gostar de reality shows e ela deve achar que eu sou muito ignorante porque eu gosto de assistir esse tipo de programa! O que efetivamente aconteceu? Eu falei “Eu gosto de reality shows”, a pessoa franziu a testa, arregalou os olhos e não falou nada. Que a pessoa me julgou e achou que eu fosse ignorante é uma INTERPRETAÇÃO minha, não um fato. Fazer essa distinção é uma forma de verificar os fatos.
Isso significa que eu não posso falar das minhas impressões e sentimentos? Claro que não, mas eu vou descrevê-los pelo o que eles são: sentimentos, sensações, emoções ou pensamentos. Ao invés de falar “você me julgou!”, eu vou falar “tive um pensamento de que você estava me julgando”. Então vou descrever essas experiências falando: Eu estou com a SENSAÇÃO que, estou com o SENTIMENTO de, tive um PENSAMENTO tal, etc. Eu posso utilizar essa estratégia para verificar os fatos com a outra pessoa, no exemplo anterior eu poderia perguntar: “Antes eu falei que eu gostava de reality shows e notei que você franziu a testa, arregalou os olhos e não falou nada e eu tive um pensamento de que você poderia estar me julgando, é isso mesmo?”. Notem a diferença, eu não posso afirmar o que não são fatos, por isso coloco em forma de pergunta.
Vamos praticar? A seguir eu vou colocar uma cena passada na Fazenda 12 e nós vamos treinar descrever e verificar os fatos. Sugiro que você assista a cena e tente fazer a sua própria descrição antes de ler a minha. Lembre que descrever os fatos é como se pudéssemos observar aquela situação por uma câmera, todos que estão observando podem fazer o mesmo relato do que aconteceu. Aqui, literalmente podemos observar através de uma câmera porque está filmado, então vamos lá:
Para começar a fazer a descrição, vou descrever brevemente as pessoas para quem não assiste a Fazenda 12: a Stéfani é a mulher de cabelo liso até a altura do umbigo que está com um boné e a Jakelyne é a mulher de cabelo preto até a altura do ombro. Nos primeiros 25 segundos do vídeo, Stéfani está esticando o lençol, ME PARECE que está arrumando a cama e Jakelyne fala: “menina como ta organizada as suas coisas” e ela responde “eu sou organizada, a Mi (outra participante do reality) era muito bagunceira”. Se quisermos verificar os fatos podemos questionar Stéfani: o que a Mi faz que nós poderíamos observar que faz você ter a impressão de que ela é bagunceira? A seguir ela fala “ela deixava um monte de coisa em cima da cama”. Ok, aqui estamos sendo mais descritivas do que simplesmente dizer que ela é bagunceira. Todos nós usamos adjetivos para nos referirmos a um conjunto de comportamentos de outras pessoas: é dedicado, é comprometido, é egoísta, é bagunceiro… é uma forma de economizarmos palavras na hora da comunicação. O problema com isso é que o que é ser bagunceiro para mim pode ser diferente do que é ser bagunceiro para você. Então a chance de termos conflitos interpessoais aumenta porque temos percepções diferentes. Já os fatos são incontestáveis, se eu deixo um par de roupas em cima da cama, isso não tem discussão, é um fato, só olhar para cama que podemos verificar isso. Agora, se você falar: você é uma bagunceira, deixa TUDO desarrumado! A chance, nesse caso, é que eu contra-argumente isso ou assuma uma postura mais defensiva.
Enfim, acho que podemos treinar várias habilidades com esse tipo de conteúdo da televisão, hoje busquei trazer uma dessas habilidades, espero que tenha sido útil. Por fim, dedico esse texto à Helena e à Renata, minhas companheiras de reality, que me ajudam e me estimulam a refletir em cima dos programas que assistimos. Até o próximo texto!
Referências
Carneiro, R. (2020, Abril 1). Com quarentena, canais de entretenimento ganham impulso na TV. Veja. Recuperado de https://veja.abril.com.br/blog/tela-plana/com-quarentena-canais-de-entretenimento-ganham-impulso-na-tv/
Linehan, M. M. (2018). Treinamento de habilidades em DBT: manual de terapia comportamental dialética para o paciente. Artmed Editora.
Stycer, M. (2020). Audiência da “Fazenda 12” no primeiro mês é a maior desde 2010 [website]. Recuperado de https://www.uol.com.br/splash/colunas/mauricio-stycer/2020/10/09/audiencia-da-fazenda-12-no-primeiro-mes-ja-e-a-maior-desde-2010.htm?cmpid=copiaecola
Incrivel o texto, Mariana!
Uma reflexão muito útil sobre um compartamento habitual nosso a partir de um exemplo próximo e fácil de compreender. Realmente adorei! Me fez pensar sobre minhas habilidades na vida codiatiana.
Oi Gabriela, que legal, fico feliz em saber que gerou essa reflexão em ti. Acho que, além do entretenimento, os reality shows podem ser úteis pra isso