Lições que aprendi jogando Boardgames

Desde anos recentes houve um influxo de jogos de tabuleiros novos no mercado brasileiro. Outrora os jogos com os quais os mais velhos de nós cresceram, como Uno (que conheci como Mau mau), Risk (que conheci como War), Monopoly (que conheci como Banco Imobiliário) e Game of Life (que conheci como… bom… jogo da vida) não reinam mais soberanos. E, como a variedade de jogos, há uma variedade grande de mecânicas e dinâmicas de jogos. Neste final de semana visitei amigos queridos e, em dois dias, jogamos dez jogos de tabuleiro diferentes.

 

 

No trabalho contextualista trabalhamos muito com metáforas. E jogos são contextos restritos, de regras restritas, e temática específica. Talvez possamos ver jogos como metáforas de aspectos específicos. Será que é possível buscar essas habilidades e conceitos que temos ali e generalizá-los? Penso que sim. Aqui vai minha tentativa.

 

Cooperar não é liderar e muito menos mandar

 

Um dos meus jogos favoritos se chama Pandemic. Neste jogo, um número de cientistas, médicos, etc viajam pelo mundo buscando criar vacinas e curar pessoas de epidemias que se espalham. Talvez ainda estejamos um pouco sensíveis sobre isso, mas o jogo é bom. Apresenta uma mecânica que, para mim, era inovadora: as pestes espalham-se sozinhas, sem a deliberação de um jogador. Assim, os jogadores combatem as patologias juntos. Ou ganham juntos, ou perdem juntos.

 

Um problema que já me foi apontado por pessoas que desgostam desse tipo de jogo é que “quem joga bem, manda”. É muito comum que uma pessoa vá se empolgando ao longo da partida e queira certificar-se que as melhores decisões são tomadas, buscando o sucesso. E, em uma mesa onde o nível de habilidade dos participantes é semelhante, essa troca de ideias pode ser muito empolgante.

 

No entanto quando existem veteranos e novatos, infelizmente é comum o que sabe menos se calar e apenas seguir a orientação dos que sabem mais. No fim, acaba não jogando.

 

Em algum momento adotei uma medida para evitar isto: uma partida onde a conversa sobre as decisões do jogo em si é vetada. Claro que podem conversar sobre assuntos diversos, e mesmo sobre jogadas passadas, mas ninguém pode falar pra ninguém nenhuma sugestão do que fazer, ainda que possa elucidar dúvidas sobre regras, etc.

 

Isso empobrece um pouco a experiência do jogo como um todo e diminui as chances de sucesso, mas ajuda muito o jogador iniciante a se desenvolver, para que possa se divertir trocando sugestões e estratégias com os demais. E ter mais cabeças pensantes é muito mais divertido.

 

Como podemos generalizar isso?

 

É fácil quando temos um grupo em que algumas pessoas mais experientes ou mesmo extrovertidas falem mais e sugiram mais. Nem sempre são as melhores ideias, mas mesmo que falem, estamos perdendo de fomentar um brainstorm e de treinar nos demais habilidades úteis.

 

E também pode ser o caso da pessoa mais tímida aproveitar-se disso para não chamar a atenção, pois pode ver nisto uma oportunidade de não sentir coisas desagradáveis que sente quando expõe-se. Perdemos aí duas oportunidades, para este sujeito: aceitação e treino de habilidades.

 

Ainda que possa tornar a reunião um pouco mais demorada, menos ágil, ganhamos uma equipe mais funcional e verdadeiramente colaborativa. No médio a longo prazo, certamente brotarão os frutos desse crescimento.

 

Competir não é brigar, e brigar não é o fim do mundo

 

Me lembro como ontem a última vez que joguei nosso War, conhecido lá fora como Risk. Além de mim, jogavam outras três pessoas, e uma delas ganhou duas partidas e estava indo muito bem naquela também. Isso em nada me incomoda: não sou competitivo. Mas uma coisa me incomodou, e era que essa pessoa tinha na sua principal estratégia convencer os demais que os outros estavam indo bem, jogando uns contra os outros, e ganhando benefícios de estar nesse vácuo. Estratégia válida. Quem me deixou incomodado, naquela tenra idade e, quero crer, um pouco menos madura, foram os demais jogadores, que não percebiam aquele padrão. Assim, decidi sair do jogo e não jogá-lo mais. Ainda não voltei a jogá-lo, mas de pouco tempo pra cá, isso é por um acaso: já mudei minha decisão.

 

Outra situação, contrária, foi uma partida onde estava discutindo acaloradamente sobre o jogo com um adversário que me é muito querido. Um terceiro disse “pessoal, não virei nas próximas reuniões, pois tenho muita aversão à brigas” (bom, ele disse isso, mas de maneira mais informal). Tomei um susto! Olhei para meu adversário, e reconheci nele o mesmo susto. Estávamos ambos seguindo um contrato, não verbal, de poder “brigar” no contexto do jogo sem isso afetar nossa relação nos outros contextos.

 

Ambas as situações são generalizáveis para diversos tipos de relacionamento. 

 

Por exemplo, é natural que coisas ditas “manchem” ou “matizem” mais duramente quando são feitas de maneira a tratar da pessoa e não do comportamento, e da generalidade frente ao específico. Exemplo: dizer “tu é muito burro” é totalmente diferente de dizer “tu tiveste de entender o conteúdo de matemática da última aula”. “Tu é desordeiro” é horrível, “não organizaste o quarto como combinamos ontem” pode não ser agradável, mas não rotula nem condena.

 

É importante saber preservar nossos contextos e relações, mas silenciar pode não ser a melhor maneira de desenvolver um repertório apropriado de comunicação. E, em competições, pode existir um afoitamento ainda maior sobre sinalizar as próprias virtudes e as falhas daquele com quem se compete. Não é que isso não deva acontecer: são informações úteis e relevantes para a tomada de decisão.

 

O foco é o quanto aquela relação é mais importante que o que está acontecendo naquele momento. Aquela reunião de equipe, aquele desentendimento no relacionamento, aquele jogo de futebol.

 

Não vamos parar de competir, é impossível isso. E, bom, acredito que também não vamos parar de brigar. Só de brigar sem queimar pontes e preservar o que valorizamos no outro já está de bom tamanho. E se isso inclui dar um tempo em uma determinada atividade, bom, que seja. Mas só até termos maturidade de lidar com aquilo sem tanta ativação emocional. 

 

Não tenha medo de buscar esclarecimento

 

 

Um video de humor sobre as diversas resistências em ouvir as regras, bem curtinho. Mas se você não entende inglês, não se preocupe, não interefere em nada com o texto.

 

 

Esqueça o “vou aprender jogando”. Para a grande maior parte dos jogos, isso não funciona bem. A pessoa que está aprendendo leva muito tempo para ter uma idéia do global, e os demais ficam, também, frustrados.

 

Todavia, na maioria dos jogos é impossível entender apenas o global, e pode ser muito difícil memorizar uma série de coisas específicas que alguns jogos trazem assim, de primeira.

 

Alguns trazem fichas de referências muito boas que permitem realmente acelerar o processo de rever as regras por consulta. Não é o caso da maioria.

 

Então, se prepare: entenda o funcionamento global, e pergunte. Quanto mais você perguntar, mais rápido vai se familiarizar com o jogo, e mais cedo todos estarão se divertindo (isso vale também para pessoas que ensinam os outros a jogar: tenha paciência – cada dúvida do novato agora é uma menos no futuro, e ninguém ensina uma coisa perfeitamente bem).

 

Perguntas específicas e claras, com respostas diretas, geralmente são o suficiente. Explicações super detalhadas de cada coisa, sequências, isso vamos ter que revisitar algumas (muitas) vezes. Mas o funcionamento central do jogo entendemos rápido.

 

Quando entrei na faculdade de medicina queria aprender a jogar truco. Pedi para vários colegas me explicarem. Todos começavam elencando a arbitrária e comprida hierarquia das cartas. Eu trancava, e dizia que não era aquilo que eu queria saber, mas, na quarta tentativa, exercitei minha pouca paciência e, eventualmente, aprendi aquilo que eu queria saber – que é por onde eu começo a explicar este jogo: truco é, simplesmente, uma melhor de três. O resto, a hierarquia de cartas, etc., é informação de referência.

 

Para onde isso se generaliza?

 

Sempre que vamos nos inteirar de um assunto novo, devemos fazê-lo de maneira combinada entre autonomia e dependência.

 

É importante eu me inteirar o mais rápido possível das premissas gerais, do que está acontecendo entre nós, dos princípios básicos dessa dieta, dos pontos centrais sobre como eu não me lesiono fazendo essa atividade física, de qual é a meta dessa equipe, etc. E é tão importante quanto – nem mais, nem menos – que exista um caminho de diálogo aberto para que eu possa elucidar toda e qualquer dúvida que surja no caminho. As coisas são dinâmicas. Ontem agradei minha companheira com sushi, hoje talvez eu a agrade com um elogio, mas não há bem como ter certeza se eu não estiver disposto a perguntar, ao invés de tentar adivinhar ou seguir regras. E, claro, ela estar disposta a me responder. Não existe comunicação unilateral. Infelizmente, existem muitas pessoas que punem os esclarecimentos, entendendo que a explicação que deram “deveria” ser suficiente, ou que a pessoa amada “deveria” saber o que eu gosto, ou mesmo que a pessoa “deveria” (através de algum tipo de super poder) saber aquilo previamente. Não se iniba.

 

São apenas expectativas do outro. Não falam de você.

 

Não tem problema perder, mas jogue para ganhar

 

Aqui vem uma dialética muito interessante:

 

Algumas pessoas se consideram muito competitivas. Querem ganhar, e seu grande prazer com o jogo é a vitória. Outras, se consideram não competitivas. Estão interessadas em conhecer o jogo, ver como ele funciona, seu delineamento, sua estética, e em passar tempo com os amigos. Está lindo, tudo isto.

 

Cuidemos: algumas pessoas, porém, estão usando isso como desculpas.

 

Algumas pessoas competitivas podem estar usando o jogo para canalizar sua vitalidade, ou mesmo alguma agressividade. Isso está muito bem até que atrapalhe o divertimento dos outros, ou mesmo o próprio. Além disso, podem existir velhas regras: “Você só tem valor quando ganha”, “se você ficar em segundo ou em último você é realmente inferior”, “se não ganhar é porque não se dedicou”. Todos temos nosso histórico de aprendizagem, e alguns desses fantasmas certamente acompanham qualquer pessoa. Mas eles se alimentam de submissão aos seus comandos, e agir de modo a aplacar seus uivos aumenta seu domínio sobre nós mesmos. Estar consciente desse conteúdo emocional (agressividade) ou cognitivo (regras, pensamentos) nos permite agir de modo compatível com nossos valores, com a conexão interpessoal, com a diversão, sem ter que abdicar de buscar o triunfo.

 

Triunfo esse, aliás, pode assustar outras pessoas, com bagagens semelhantes ou distintas. Afinal, para vencer é necessário, bom, sim, sorte, mas além disso comprometimento, empenho. E quando perdemos sem nos empenhar temos uma boa desculpa. Agora, quando tentamos, de fato, o sucesso, e não o atingimos, pode surgir (aliás, acho difícil que não surja) a frustração. Muitas pessoas se escondem atrás do discurso de “não ser competitivo” como uma maneira de evitar a frustração. Todavia esse medo de se frustrar também condiciona nossa experiência da realidade e pode tornar o mundo sobrepujante. E, numa mesa de jogo, claro, diminui o prazer dos demais.

 

Aprenda a tolerar a frustração jogando para ganhar e perdendo, e aprenda a jogar para se divertir e treinar perdendo quando joga para ganhar.

 

Se comunique sobre o contexto

 

Em última instância, o jogo de tabuleiro, essa metáfora de um pequeno aspecto da realidade, não está fora da realidade. Está inserida nesta. São pessoas reunidas na volta de pedaços de plástico, papel, metal e/ou papelão para se divertir. Todas essas coisas que podem acontecer no jogo podem atrapalhar a diversão, e isso não é uma atitude de consideração para com as pessoas que estão ali.

 

Assim, da mesma forma, em todos os contextos que queiramos que sejam profícuos e sustentáveis, ou seja, que nos sejam de valor, a consideração pelos demais (e o auto respeito) devem estar priorizados. Levantar os “meta-tópicos” de competição, cooperação, engajamento, valores e sim, respeito e consideração pode ficar chato se feito protocolarmente, mas sempre que existir um obstáculo, sempre que a coisa para de fluir livremente, recomendo que comecemos a buscar nossa investigação por aí.

 

Estar disposto a se vulnerabilizar é o principal fator de aumento de intimidade, e, ainda que nem todo mundo precise ser seu irmão de alma, viver em um mundo onde os outros são “personagens de papelão” é igualmente triste.

 

Se divirta com respeito pelos outros, e dê o melhor de si podendo se divertir mesmo com alguns dos percalços, especialmente os que geram aprendizado. A vida não se resume a isso, mas pode ajudar bastante.

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Sobre o Autor
Emmanuel Kanter

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