Hamlet e Terapia de Aceitação e Compromisso

Hamlet e Terapia de Aceitação e Compromisso

 

HAMLET. Direção: Laurence Olivier. Rank Film Distributors, 1948. 155 min.

 

Neste texto observo alguns conselhos que chegam até nós através do bardo. Em uma das peças mais famosas de Shakespeare, Hamlet, temos Polônio, um ancião conselheiro do Rei Hamlet (pai do príncipe Hamlet) e Rei Cláudio (o usurpador). Este senhor é pai de Ofélia, com quem Hamlet se envolve, e também de Lartes, com quem Hamlet duela na parte final da peça.

 

Antes da tragédia que ocorreu com esta família, Laertes parte em uma viagem para França, e recebe conselhos do seu pai. Estes, imortais, comento neste texto, tentando iluminar minha vasta ignorância com a chama da Teoria da Aceitação e Compromisso. O texto da peça, traduzido por Millôr Fernandes, fica em negrito.

 

Não dá voz ao que pensares, nem transforma em ação um pensamento tolo.

 

Já iniciando com bastante coerência com nossa teoria, vemos aí um conselho sobre impulsividade, mas não apenas sobre isto – veja bem, parar para avaliar se um pensamento (e aqui entenderemos pensamento como todo conteúdo mental, ou, ainda, como todo comportamento privativo) deve ser levado a cabo e transformado em ação física motora ou em uma verbalização (ou seja, em comportamento público), a pessoa deve estar muito atenta ao seu conteúdo mental e minimamente desfusionada deste conteúdo (afinal, se fusionada, o leva a cabo de maneira mais literal).

 

Além disso, como poderíamos definir na ACT o que é um pensamento “tolo”? No sentido de falar ou cometer tolices, entendo que isso quer dizer, antes de mais nada, que é um conteúdo afastado dos nossos valores. Ou seja, que, ao levar a cabo a literariedade disso que passa na mente naquele momento, de impulsos, desejos, emoções, podemos nos afastar da vida que queremos viver. 

 

Sejas amistoso, sim, jamais vulgar.

 

Vulgar aqui não significa o sentido sexual de vulgaridade, evidente. Vulgar aqui significa empobrecido de sutileza, de nuance, de elegancia. Assim, quando em contextos onde ainda não temos intimidade, não reconhecemos o que será ou não apropriado.

 

E isso de ACT tem o quê?

 

(Sou da opinião que nenhum campo da vida fica desconectado do modelo…)

 

Para ser adequadamente elegante, não no sentido de chique, é necessário, novamente, aceitar a situação presente. Me vejo num local desconhecido, posso querer ficar calado demais, com medo, e evitar aqueles desconfortos. Posso, para compensar, querer falar demais, fazer piadas, “forçar a amizade” e acabar afastando os demais ou passando uma idéia diferente de mim do que aquela de quem me conhece já um pouco melhor.

 

Vejo o ambiente à minha volta (presente momento) e naquele ambiente vejo a mim mesmo (self). Percebo o que é importante para mim (valores) e, tolerando qualquer impulso de exagerar para exagero ou falta (desfusão) ajo de acordo com aquilo que é melhor para mim e para os outros (conduta comprometida).

 

Os amigos que tenhas, já postos à prova,

Prende-os na tua alma com grampos de aço;

Mas não caleja a mão festejando qualquer galinho implume

Mal saído do ovo. 

 

Quando se fala em amigo posto à prova, é importante não ser novamente literal. Não é necessário submeter seus amigos à provas para descobrir se são pessoas boas ou ruins, amigos fiéis ou não: a vida nos testa diariamente. Basta apenas não fixar-se em suas idéias de o que as pessoas são ou não são e olhar, olhar apenas para ver, não para confirmar, com uma abertura de coração. Pode ser que uma pessoa com poucos interesses em comum se mostre muito mais propensa a uma conexão bondosa, e outro, que compartilha de muitas informações e afinidades, no primeiro desconforto já deixe à mão.

 

Apenas olhe, como um cientista curioso, para suas relações, para o que as pessoas dizem não com as palavras, mas com seu comportamento. Essa é uma atenção plena muito generosa, pois não força ninguém a ser quem não é.

 

E quando encontrar uma jóia preciosa que é um amigo fiel e sincero – sem que tenha que se esforçar para isso, pela sua própria natureza – não perca-o.

 

E, complementando acima, é importante não se fechar, mas desenvolver uma ideia clara de que oportunidades a vida já deu para nos aproximar que foram utilizadas ou subutilizadas. Que prioridades essa pessoa tem. Hoje um ovo, talvez depois de pouco tempo um galo ou galinha adulto e maduro, ou… uma omelete.

 

(Sobre aproximar-se progressivamente de alguém, sugiro também a habilidade MATCH +1 da RODBT)

 

Procura não entrar em nenhuma briga;

Mas, entrando, encurrala o medo no inimigo,

 

Bom, como pacifista, vou tentar ler isso de maneira um pouco mais metafórica. Mas o leitor pode e deve fazer sua própria leitura.

 

Tenho a impressão que hoje todos conflitos querem tornar-se cruzadas. As pessoas compram diversas bandeiras, e creem que mudarão o mundo através de revolução atrás de revolução, ainda que não ajudem muitas vezes a arrumar a própria casa.

 

Talvez valha a pena deixar as ondas passarem, tolerando os impulsos e se desfusionando com leveza. A maior parte dos conflitos se resolvem, e muitas vezes sequer existiam.

 

De tempos em tempos, porém, haverá uma briga que vale a pena ser brigada. E para saber temos que estar bem afinados com nossos valores. Algo que vale a pena viver (alguns diriam que algo que vale a pena morrer, mas não quero entrar em polêmicas).

 

Se não estivermos o tempo inteiro envolvidos com toda e qualquer causa, creio que poderemos dedicar muito mais energia quando surgir uma que é realmente importante e onde podemos fazer real diferença.

 

Presta ouvido a muitos, tua voz a poucos.

Acolhe a opinião de todos – mas você decide.

 

Existe uma tendência humana em falar. Em tomar rápida e urgentemente uma posição, muitas vezes nada dialética – um lado é bom, o outro é ruim. Mal escuta algo e já sai falando, misturando e empelotando informações.

 

Em várias áreas profissionais as redes sociais geraram uma confusão de competências. Por exemplo, imagine que uma pessoa é um excelente encanador. Há anos realiza seu ofício. Não tem muito tempo para aprender a utilizar recursos de gravação de áudio e vídeo e fazer conteúdo incrível para redes sociais. Eis que surge um outro sujeito que mal e mal aprendeu as bases do ofício na qual o outro é mestre, mas sabe fazer vídeos com músicas, dançando e com efeitos. Claro que essas habilidades são muito bonitas! Mas não substituem a maestria que o outro tem frente a um cano furado em uma parede.

 

É importante ouvir, coletar informações, ponderar. É importante refletir, segurar os impulsos e as emoções, e pesar o que cada informação, cada ideia, cada candidato político, tem de positivo e negativo.

 

Se, após todo esse esforço, emitir uma opinião, isso não é um crime – mas se certifica da eficiência dessa fala. Não há porque jogar fora tanto esforço quando o interlocutor não está interessado ou aberto para escutar.

 

E, sobre sua vida, muitos podem querer opinar, mas ninguém vai ter que viver o que você decidir. Mesmo que se chateiem, mesmo que tenha medo ou tristeza de fazer diferente do que foi dito, seus valores, elaborados e clarificados, são o único guia correto para definir suas condutas.

 

Usa roupas tão caras quanto tua bolsa permitir,

Mas nada de extravagâncias – ricas, mas não pomposas.

O hábito revela o homem,

E, na França, as pessoas de poder ou posição

Se mostram distintas e generosas pelas roupas que vestem.

 

Em algum momento da minha vida eu pratiquei uma arte marcial. Um dia o dono da academia me perguntou se eu faria o exame para a tal mudança de faixa. Disse que não estava interessado naquilo, pois não mudava nada para mim.

 

Ele me explicou duas coisas interessantes sobre isso:

 

Uma é que a relevância de uma escola de arte marcial pode ser vista de fora não só pela qualidade dos professores, mas pelo empenho e perseverança dos alunos, e que isso é sinalizado pela graduação dos mesmos.

 

Outra é que, quando chegamos em uma escola de luta desconhecida, buscamos lutar com alguém de nível semelhante ao nosso. Se sou um iniciante e luto com um veterano que nunca quis se graduar, para ele pode ser uma experiência frustrante. Se a pessoa quer logo chegar em um grau que ainda não está bem preparado, pode até conseguir – mas para os experientes que queiram treinar com ele vai ser também uma experiência constrangedora.

 

Talvez nos dias de hoje seja vulgar defender usar roupas “tão caras quanto tua bolsa permitir”. Mas aconselhar a se vestir de maneira coerente com sua cultura, seus ideais e, até certo ponto, sua capacidade financeira (sem explodir o cartão para tentar ser ‘algo que não é’, por favor!) seja o equivalente disto no nosso tempo atual.

 

E, não adianta chorar, temos que aplicar a aceitação: muitas pessoas julgam, sim, um livro pela capa. E às vezes é mais importante superar facilmente um obstáculo frente à vantagem de atingir aquele objetivo coerente com nossos valores do que empacar para “ter razão” ou alguma coisa do tipo, que provavelmente não fará diferença nenhuma para modificar os valores daquela pessoa julgadora.

 

Não empreste nem peça emprestado:

Quem empresta perde o amigo e o dinheiro;

Quem pede emprestado já perdeu o controle de sua economia.

 

Este trecho, na verdade, é aquele que me fez apaixonar-me por esse pequeno texto.

 

Muitas vezes já me pediram dinheiro emprestado, e o constrangimento de não poder pagar, ou a falta de vontade em fazê-lo cria um afastamento entre os então amigos que pode apagar ou mesmo quebrar a amizade.

 

A partir da leitura desse item, eu adotei uma postura um pouco diferente: se posso dispor daquele dinheiro, eu dou. Se não posso, eu recuso. Ainda não passei por recusas firmes porém educadas que culminaram em términos de amizade…

 

Mas já recebi, sim, dinheiro dado de volta. Como se emprestado fora. E é recebido como algum tipo de presente generoso, e gera uma conexão melhor com aquele que, se estivesse apenas pagando um empréstimo, estaria fazendo nada mais que sua obrigação.

 

Sobre pedir emprestado, é difícil mesmo falar da situação alheia. Não sabemos que calamidades podem surgir na vida das pessoas. É importante desfusionar dessa regra tão rígida. Mas, em se falando de nossos valores, de nossos impulsos, é importante que minimizemos os riscos de isso acontecer conosco – pelo menos a respeito daquilo que podemos controlar. Ou seja, das condutas que podemos ter comprometidas com nossos valores, e não com valores culturais possivelmente contrários a nosso bem viver.

 

E, sobretudo, isto: sê fiel a ti mesmo.

Jamais serás falso pra ninguém

 

Este é o coração da Teoria da Aceitação e Compromisso. Os processos, técnicas, etc., são apenas expansões e comentários disto.

 

Leitor admirado, se concorda, se discorda, comente. Não ganharei com isso um centavo mas me deleitarei em trocar elegantes e valoradas opiniões com você.

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Sobre o Autor
Emmanuel Kanter

1 comentários em “Hamlet e Terapia de Aceitação e Compromisso”

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