Há certas coisas na vida que aprendemos desde cedo, porém levam um certo tempo para nos fazer sentido. Desde pequena, seja através de minha família, do contato com religiões, na formação escolar ou em trabalhos voluntários, valores morais e de vida me foram apresentados como forma de nortear minha conduta perante as pessoas. Nesses diferentes contextos, muito se falava de respeito ao próximo, de solidariedade, amor, dentre tantos outros. Grande parte destes valores carrego comigo como referências importantes, e há um deles que pude atribuir, nos últimos tempos, novos significados: me refiro aqui à compaixão, que ocupa um papel central dentro da postura terapêutica de diversas abordagens psicoterápicas, em especial da Terapia Focada na Compaixão (TFC).
Definir compaixão pode ser difícil. Para muitos, pode remeter ao sentimento de pena de algo ou alguém, pois é comum sentí-la frente a dor alheia. Porém, ter compaixão é diferente disso, sendo que esse “sentir pena” costuma estar associado a um julgamento de inferioridade do outro, além de não trazer consigo, necessariamente, o aspecto de conexão e o desejo de aliviar o sofrimento que caracterizam a compaixão. A compaixão envolve, além de uma ressonância emocional entre os próprios sentimentos e os do outro, um sentimento profundo de conexão e compartilhamento da experiência de viver. Ou seja, envolve identificar-se com o outro na condição de ser que sofre e que busca por segurança e bem-estar, reconhecendo nessa condição algo que nos une às outras pessoas e aos outros seres vivos. Além dessa conexão emocional, há um componente mais ativo, uma motivação interna para buscar meios de aliviar o sofrimento. Podemos perceber esse sentimento quando empatizamos com a dor do outro e nos movemos para reduzí-la, seja com gestos, palavras ou ações.
O contato com a Terapia Focada na Compaixão, desenvolvida pelo Psicólogo britânico Paul Gilbert, e com as demais abordagens Comportamentais Contextuais me permitiram perceber o quanto era difícil para mim praticar a compaixão especialmente com uma pessoa: eu mesma. Eu estava muito mais próxima do “sentir pena” e de julgar minhas atitudes. Em contrapartida, descobri algo simples, que a autocompaixão consiste em direcionar uma atitude compassiva a si próprio. Nesse sentido, autocompaixão é muito diferente da autoestima ou do sentir pena de si mesmo, pois se refere a uma aceitação radical do próprio sofrimento e à adoção de comportamentos que buscam acolher, acalmar e tranquilizar a si mesmo como se faria com uma pessoa amada que estivesse sofrendo – como um filho, por exemplo.
Uma grande importância tem sido atribuída ao desenvolvimento de habilidades ligadas à autocompaixão na promoção da saúde mental, pois há o crescente reconhecimento de que a adoção de uma atitude mais compassiva consigo mesmo é capaz de promover alívio ao sofrimento psicológico, atuando também como fator de proteção contra o desenvolvimento de transtornos mentais como a depressão, transtornos de ansiedade e de personalidade. Ademais, fica claro que o desenvolvimento dessas habilidades traz consigo também um grande potencial de transformação social, uma vez que familiarizar-se com os sentimentos de paz, contentamento e bem-estar que acompanham os comportamentos de autocompaixão leva a um maior estímulo a agir de modo mais compassivo com as outras pessoas com quem se convive, contribuindo para a criação de um ambiente mais saudável para si e para os demais.
Alguns estudos sobre a neurofisiologia das emoções apontam a existência de três sistemas de regulação afetiva inerentes aos organismos humanos e presentes também nos outros mamíferos:
- um sistema de proteção contra ameaças, que mobiliza afetos como ansiedade, medo e nojo;
- um sistema de busca por recursos, motivação e incentivo, que está ligado a sentimentos de excitação, curiosidade e entusiasmo;
- e um sistema de afiliação e conforto, que está mais relacionado a sentimentos de contentamento, segurança e conexão, além de comportamentos de apego e sociabilidade.
Os sentimentos de compaixão e autocompaixão estão relacionados à ativação desse último sistema, cuja evolução foi o que permitiu a emergência de comportamentos pró-sociais que estão na base de nossa civilização. Sugere-se que disfunções e desequilíbrios entre esses sistemas acompanham diversas manifestações psicopatológicas tais como a depressão e a ansiedade. Em tais distúrbios, pode haver uma hiperatividade do sistema de proteção contra ameaças, que leva à presença frequente de sentimentos intensos de vergonha, culpa, medo e uma atitude exageradamente autocrítica, sem que a pessoa conte com a adequada contrapartida de um sistema de conforto interno, pois este estaria subdesenvolvido.
A TFC alia os avanços recentes do estudo da neurofisiologia das emoções às tradições milenares do budismo como fundamentos a partir dos quais desenvolve um treinamento em compaixão, que visa a facilitar às pessoas com dificuldades emocionais intensas associadas a sentimentos de vergonha, culpa e exagerada autocrítica o acesso à compaixão e à autocompaixão como uma forma de aliviar-lhes o sofrimento psíquico e promover bem-estar. Nesse treinamento, ao ser exposta às atitudes do terapeuta que expressam os diversos atributos da compaixão – importar-se com o bem-estar próprio e do outro, sensibilidade ao sofrimento e às necessidades, engajamento emocional, tolerância à pressão e aos sentimentos difíceis, empatia e reconhecimento do próprio mundo interno e do dos outros, e não julgamento – a pessoa aprende a desenvolver uma atitude compassiva para consigo e os demais.
Finalizo este texto referenciando seu principal autor, meu colega Lucas Schuster, que gentilmente compartilhou suas palavras escritas para serem aqui divididas! Grata!