#dropthedisorder: uma outra visão da saúde mental

Em um belíssimo e comovente TED talk, Eleanor Longden afirma que a pergunta relevante à psiquiatria não devia ser “o que está errado com você?”, mas “o que aconteceu com você?” Com isso, ela propõe uma orientação para o contexto no qual ocorrem as experiências e as ações ligadas ao sofrimento psicológico, e não a alguma disfunção que precisa ser corrigida. Suas palavras são retomadas por Jo Watson em uma poesia na qual revisita a experiência de Longden e apresenta sua concepção alternativa do sofrimento emocional, mais alinhada à ideia de que o que aconteceu com a pessoa é o que importa, e menos orientada à atribuição de categorias e rótulos que podem acabar tendo o efeito indesejado de definir quem a pessoa é a partir de um conjunto de sintomas que apresenta, o que pode inclusive levar outras pessoas a reagirem e esperarem certas coisas de alguém devido à aplicação desse rótulo.

O trabalho em psicoterapia na perspectiva da Terapia Comportamental Dialética (DBT) ou das Terapias Comportamentais Contextuais é coerente com essa orientação para o que acontece e aconteceu com a pessoa em vez de buscar o que está errado com ela. Fundamentados na filosofia dialética ou no contextualismo funcional, respectivamente, ambos os pontos de vista se traduzem em um pressuposto de que, para promover alívio do sofrimento – um objetivo geral da grande maioria das psicoterapias – é mais útil se indagar pelo que acontece e aconteceu, isto é, considerar o comportamento como indissociável do contexto, do que pressupor uma entidade patológica latente que precisa ser identificada e transformada para que a pessoa fique boa. Uma das razões por que é mais útil seguir esse raciocínio é porque ele evitará que se produzam as profecias autorrealizáveis a partir da determinação do que a pessoa tem e da quase automática identificação que se opera entre o que ela tem e quem ela é.

Muitas vezes, o treinamento de base dos terapeutas, que costuma se amparar em pontos de vista mecanicistas, individualistas e internalistas no caso da maioria das formações em psicologia e psiquiatria na nossa cultura, atrapalha a adoção dessa atitude de ir ao encontro do outro e buscar primordialmente conhecer o contexto no qual esse outro se tornou quem é. Pergunta-se mais pelo que está errado com o paciente do que pelo que ocorreu com ele quando se atribui ao indivíduo a responsabilidade única por suas ações, e nesse indivíduo se pressupõe um agente interno que dá causa e motivo às ações; agente esse que em alguns casos pode ter um funcionamento problemático e precisa ser corrigido assim como se conserta uma máquina defeituosa. Juntos, esses pressupostos subjazem um modo de ver a clínica baseado na identificação de partes problemáticas no funcionamento da pessoa e subsequente correção desse funcionamento a fim de que possa se adaptar melhor ao mundo e assim sofrer menos.

Se, por um lado, a identificação de uma parte problemática e a promessa de uma cura para o funcionamento interno pode gerar alívio e esperança na pessoa que sofre, por outro lado, ela pode gerar mais sofrimento e estigmatização. Essa segunda consequência se pode observar no caso de Eleanor Longden, por exemplo, em que a partir da definição de um diagnóstico de esquizofrenia, a esperança de voltar a viver uma vida plena e com sentido foi sendo pouco a pouco roubada dela enquanto lhe era oferecida uma via de resignação e sucumbência a uma doença incurável. Essa desesperança se observa com frequência também quando uma pessoa recebe o diagnóstico de um Transtorno de Personalidade. Por que isso? Um transtorno de personalidade é definido como um padrão global e estável de comportamentos, pensamentos e estilo de interação interpessoal que desvia de uma certa norma e apresenta um dado conjunto de características que causam grande prejuízo à vida da pessoa. Os transtornos de personalidade, conforme o manual de classificação mais usado em nosso meio, o DSM, se dividem em três agrupamentos e incluem no total dez categorias diagnósticas diferentes. A grande diferença entre o impacto que tem um diagnóstico de transtorno de personalidade em relação a outro diagnóstico é que se trata de um padrão global que descreve o funcionamento geral da pessoa. Mais do que uma parte defeituosa, como poderia ser interpretado um transtorno de ansiedade ou de estresse pós traumático, por exemplo, o diagnóstico de transtorno de personalidade pode ser recebido como uma mensagem de que a pessoa toda em seu estilo de se comportar e se relacionar com o mundo é defeituosa. Um exemplo disso é uma cena do seriado ‘Crazy ex-girlfriend’ atualmente em veiculação pelo canal estadunidense The CW, que mescla o estilo musical com uma comédia satírica à sociedade contemporânea, inclusive à maneira como são abordadas as questões de saúde mental e sofrimento emocional em nossa cultura. Na série, Rachel Bloom representa Rebecca Bunch, uma jovem advogada que abandona uma carreira jurídica em Nova Iorque, extremamente bem-sucedida para os padrões vigentes em seu meio, para ir em busca de um antigo amor da adolescência em uma cidadezinha do interior da Califórnia. Em um dado momento da série, Rebecca recebe um diagnóstico de Transtorno de Personalidade (https://www.youtube.com/watch?v=uic_3vlI5BE e https://www.youtube.com/watch?v=_J9zFyYm-Yg). Impactada com a notícia, Rebecca expressa certa desesperança diante do pensamento de que isso não é algo que ela tem, mas sim algo que ela é. A categoria diagnóstica se torna um rótulo, uma identidade. Rótulos são úteis porque sumarizam informações e facilitam a comunicação ao permitirem referências rápidas a objetos do mundo, mas, ao sumarizar as informações, eles excluem partes do contexto que podem ser vitais à compreensão do fenômeno sobre o qual se fala. Quando uma categoria diagnóstica se torna um rótulo, ela passa a definir a pessoa em termos de uma identidade determinada internamente e levar a uma desconsideração do contexto no qual os comportamentos e padrões de ação dessa pessoa surgem e se mantêm.

A DBT, e outras abordagens contextuais, partem de um ponto de vista que destoa das interpretações individualistas e internalistas mais comuns. Na DBT, adota-se da filosofia dialética e do Zen a premissa de que a realidade é mutável e se define pela interdependência de todas as coisas. Partindo daí, pressupõe-se que não faz sentido analisar um ato desconectado de todo o contexto que o envolve. Da mesma forma, abordagens como a ACT e a FAP adotam o ponto de vista contextualista funcional, segundo o qual a unidade fundamental de análise de uma ciência do comportamento deve ser o ato-em-contexto, ou seja, a relação entre as ações de um organismo e o contexto histórico e situacional em que elas ocorrem, sendo impossível compreender um sem considerar o outro. Nesse ponto de vista, quando alguém explode em um ataque de raiva, não é possível compreender esse comportamento de expressar raiva sem compreender os elementos presentes e passados, eventos próximos e remotos que tornaram mais provável a ocorrência desse evento nesse momento, bem como as consequências produzidas no curto e longo prazo por essas ações, as quais influenciam tanto a ocorrência da ação no momento presente quanto sua probabilidade de tornar a ocorrer futuramente. Não se trata de dizer que o indivíduo é passivo diante do ambiente, tampouco de dizer que o ambiente se dobra à vontade do indivíduo, mas sim de que são uma coisa só, ato e contexto, organismo e ambiente são uma amálgama que se modifica ao longo do tempo.

Ao assumir esse ponto de vista, a atitude de empatia fenomenológica é quase uma decorrência natural: quando nos indagamos constantemente qual é o contexto em que uma experiência ou uma ação vem a ocorrer, estamos num processo contínuo de construir uma perspectiva mais rica a partir da qual possamos entender a verdade e a legitimidade inerente à experiência de cada pessoa, e compreender a função de suas ações no mundo em termos das consequências que produz e dos antecedentes que fizeram que aquela ação tenha se tornado para aquela pessoa a via mais provável de produzir tais consequências. Nesse ponto de vista, buscar as categorias diagnósticas não se faz tão necessário, cedendo lugar à busca por descrições tão precisas quanto possível das ações e seus contextos, de preferência descritas a partir da perspectiva daquele que as vive e dos que fazem parte de seu entorno direto. Ao adotar uma perspectiva contextualista ou dialética sobre a realidade se torna possível que se identifiquem elementos externos ao indivíduo ou ao seu comportamento que podem ser influenciados, a fim de modificar positivamente no sentido de uma melhora de qualidade de vida. Esses elementos podem ser ambientes físicos, tipos de relação em que se a pessoa se engaja, e também formas de se relacionar com certos pensamentos e emoções. Mas, mais relevante ainda ao escopo deste texto, a partir de um ponto de vista contextualista, podemos largar o rótulo e acompanhar as pessoas em sua exploração de quem são e de quais são suas circunstâncias. Essa perspectiva previne as injustiças e preconceitos que podem advir de um olhar enviesado que atribui intenções ou capacidades com base nos rótulos aplicados. Uma visão contextualista, que enfatiza a transação e a interdependência entre organismo, ambiente e história, possibilita a adoção de uma atitude fenomenologicamente empática, na qual se considera que a pessoa diante de nós expressa sua visão do mundo da melhor forma que pode, e que há valor e legitimidade nesse ponto de vista, independentemente de qual rótulo possa se aplicar a essa pessoa ou ao comportamento que ocorre.

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Sobre o Autor
Lucas A Schuster de Souza

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