Quando começamos a ter contato com a Terapia de Aceitação e Compromisso, seja como terapeuta ou como paciente, não é raro que fiquemos bastante empolgados com as possibilidades que esse ponto de vista abre para uma vida mais satisfatória, experimentada com vitalidade e com um senso de propósito. E nesse entusiasmo, é fácil corrermos para trabalhar com a clarificação dos valores (o que e quem realmente é importante? quem é a pessoa que gostaria de ser?) e construção de padrões de ação comprometida (como poderia agir de modo coerente com esses valores? se não estivesse precisando lutar com os sentimentos, o que gostaria de estar fazendo?). No entanto, a experiência mostra que apressar o passo na construção de flexibilidade psicológica pode acabar construindo mais rigidez e criar mais obstáculos a uma vida vivida com propósito e vitalidade.
Na ACT, se propõe desenvolver de forma integrada e sinérgica um conjunto de padrões de comportamentos que constitui o processo de flexibilidade psicológica. Esses padrões englobam: o direcionamento da atenção ao que experimentamos a cada instante, com abertura e disposição para vivenciar as experiências plenamente como elas se apresentam, momento a momento (mindfulness e disposição). Faz parte ainda da construção da flexibilidade psicológica a habilidade de observar em perspectiva as interpretações e pensamentos que construímos à medida que somos tocados pelas experiências da vida, reconhecendo essas construções mentais como produtos do contexto em que ocorrem e da nossa história, diferentes da experiência em si (desfusão). Na ACT, busca-se ainda fazer emergir, a partir da combinação desses elementos citados anteriormente, uma capacidade de observar em perspectiva a própria experiência que temos de nós mesmos, reconhecendo os rótulos e conceitos que temos de quem somos como conteúdos de nossa experiência de ser, mas que não são capazes de definir plenamente o que é esse ser. A partir daí se torna possível vivenciar uma experiência de si como o contexto no qual os conteúdos, os pensamentos, os rótulos e as sensações ocorrem, constrói-se uma experiência de um self que transcende as limitações e que é capaz de conter em si todo tipo de conteúdo ou definição sem se esgotar neles, um self espaçoso (experiência de si como contexto). Tudo isso, porém, seria de pouca utilidade se não houvessem os componentes finais do processo de flexibilidade psicológica, os valores e as ações coerentes com eles (valores e ação comprometida).
É compreensível, portanto, o entusiasmo com esses dois últimos elementos, pois a clarificação de valores e a ação comprometida parecem ser como os pontos culminantes de um processo de flexibilidade psicológica, e têm por base os processos citados anteriormente (mindfulness, disposição, desfusão e experiência de si como contexto). De muito pouco adianta, em termos de vitalidade e transformação positiva da realidade somente construir essa base, composta pelo estar atento, aberto e consciente de si, se não se puder construir sobre ela uma experiência de propósito e um engajamento efetivo em ações voltadas à manifestação desses propósitos em cada momento da vida. Se tentássemos experimentar a ACT sem trabalhar com valores e ação comprometida, facilmente seríamos tomados por uma experiência de niilismo, em que uma profunda desesperança e inação poderiam emergir da constatação de que a realidade é construída arbitrariamente e de que a noção que temos de nós mesmos não passa de ilusão. Nesse cenário, de consciência, abertura e desfusão, mas sem valores, somos arrastados à experiência de “não há o que fazer porque nada importa”.
Por outro lado, ainda que cultivássemos uma clareza de propósito e consciência dos caminhos a seguir para manifestar tais propósitos em nossa experiência da realidade momento a momento, sem abertura e desfusão, seríamos facilmente tomados por uma pressão insuportável de realizar grandes coisas ou arrastados por julgamentos dos mais diversos, tais como “é tudo muito grande. por mais que eu faça, nunca vou conseguir mudar realmente as coisas“, ou “se só eu fizer algo alinhado ao meu propósito mas os outros não, de nada vai adiantar” ou poderíamos ainda ficar presos em dilemas e contradições aparentes como “se eu fizer X, que é coerente com meu valor A, estarei indo contra meu valor B, mas se não fizer, estarei indo contra meu valor X e Y também, mas se fizer Z…” e assim por diante. Portanto, na tentativa de desenvolver uma flexibilidade para agir no mundo e experimentar nossa vida, se pulamos cedo demais para os valores e ação comprometida, nos faltará a estabilidade para agir em um mundo complexo, contraditório e permanentemente em fluxo. Sem essa estabilidade, é provável que nos percamos em ações erráticas ou paralisemos diante da complexidade insondável do universo que construímos a partir de nossa experiência simbólica.
Assim, ao iniciarmos a prática da flexibilidade psicológica, é importante que estejamos atentos à interdependência entre os elementos que a constituem. Cuidemos de avançar na direção de clarificar e manifestar o que é experimentado como valores e propósitos, mas sempre equilibrando de equilibrar dois outros elementos fundamentais da flexibilidade. O primeiro é o cultivo da abertura: disposição para experimentar sem defesas desnecessárias nossas vivências internas, e desconstrução do sentido de verdade absoluta que damos a pensamentos, interpretações e julgamento. O segundo, o cultivo da estabilidade: redirecionamento intencional da atenção aos fenômenos como ocorrem no presente e ao modo como impactamos e somos impactados pelo ambiente, combinado ao reconhecimento da transitoriedade de nossa experiência de self e da irredutibilidade da nossa experiência de quem somos a rótulos e conceitos fechados. Assim, temos a base segura para agir no mundo de forma propositada e efetiva, transformando de maneira positiva a realidade que compartilhamos com os demais.