Sou terapeuta por quê? Entre a lua e o dedo que aponta

Este não é um texto técnico ou ilustrativo de alguma teoria psicológica, ainda que tenha sido construído a partir da minha experiência com algumas delas – especialmente o ponto de vista da flexibilidade psicológica e as terapias comportamentais contextuais. Não é um texto sobre ciência, mas sobre o lado humano do que é ser terapeuta para mim. Por isso, é um texto pessoal. Assim, convido o leitor a refletir comigo sobre o que é praticar a psicoterapia, e, nessa reflexão que é pessoal, quem sabe, leitor, você, que também é pessoa, encontre algo que fala da sua vida também.

Uma pergunta costuma ser um bom ponto de partida. Tentemos esta então: por que sou terapeuta? Porque gosto de ajudar as pessoas a resolverem seus problemas. Essa já foi uma resposta. Porque quero curar as pessoas de seu sofrimento psicológico. Essa já foi uma outra resposta que me dei à mesma pergunta.

Fazem sentido ainda para mim essas respostas. Ainda dizem algo do que me parece que é ser terapeuta: o que às vezes vamos buscar em um terapeuta é alguém que nos salve do sofrimento que nos aflige; alguém que nos mostre o caminho para deixar de nos repetirmos nos erros e hábitos que nos são prejudiciais. Não é mais ou menos isso?

Vou à terapia para que o psicólogo me ensine a me libertar da minha ansiedade. Espero dele que me mostre o caminho:

– Respire assim e assim; pense esta e aquela outra coisa e… puft! Livre da ansiedade!

Vou à terapia para que o terapeuta me ajude a não depender mais das drogas. Espero que me instrua nos métodos hábeis para isso:

– Faça assim e assim, e aí está… Livre das drogas!

Pode ser que eu vá à terapia porque quero me entender melhor, saber de onde vêm esses pensamentos e esses hábitos que tenho. Por que sou como sou, afinal?

– Veja, aqui está a origem. É dali que vem, e disso e disso ainda. E talvez tenha a ver com esta outra coisa aqui também. Pronto, agora você já sabe o que deve saber sobre você mesmo. Estamos prontos.

Aqui, de onde estou agora, me vejo sendo esse terapeuta às vezes. Há aí algo que, por um bom tempo, teve um grande apelo para mim. Há uma resolutividade, uma eficiência no controle, na previsão e na capacidade de prover respostas acuradas e resolver os problemas. Mas ao mesmo tempo, algo não fecha. Um dos problemas que me apareceram nessa caminhada foi o do fracasso, da falha e da impotência. Que faço quando não sei a resposta, o caminho ou o método; ou quando não consigo achar as origens e explicações? Preciso trabalhar mais, melhor. Preciso estudar mais meus manuais, preciso de supervisão – consultar outros mais experientes e mais versados nos métodos. Treinar-me mais para vir mais afiado ao próximo encontro com meu cliente, dessa vez com a resposta correta ao seu enigma, com um caminho bem delineado para aquilo de que necessita. Estudo, pratico, treino, aprendo, aplico, resolvo. Nisso, cresço… crescemos. Esse problema já não incomoda, o da insuficiência. Pelo contrário, quando aparece, sei o que fazer e, depois de algum esforço, fico satisfeito comigo por ter solucionado mais um enigma, ajudado outra pessoa. Meu cliente vai embora satisfeito: problema resolvido, dinheiro bem investido.

Mas sinto ainda que algo está estranho. Vejo entrarem pela porta pessoas quebradas, e saírem pessoas consertadas, remendadas. Softwares com erros são reprogramados conforme diretrizes de eficiência e efetividade e voltam a operar com máximo rendimento. Sucesso! Quando me vejo incapaz, adiciono algumas técnicas novas à minha caixa de ferramentas, e pronto. Funciona. Mas que coisa é essa que me diz que ainda está estranho? Enquanto me pergunto o que há, uma imagem me ocorre: vejo a mim mesmo, vários anos atrás, escrevendo uma carta aos meus pais contando-lhes por que quero trancar a faculdade de informática e estudar psicologia. Lá, naquela noite dos meus 17 anos, eu estava pedindo que legitimassem uma escolha que me parecia brotar do fundo do meu coração: queria dedicar minha vida às pessoas, não às máquinas. Acho que é aí que está o que me estranha. Aqui, de onde estou agora, vejo o que ocorre quando sou aquele terapeuta que descrevi antes. Estou consertando máquinas de novo. Perdi as pessoas.

Como nos acontece quando sentimos uma dor forte, física ou emocional, de sermos tomados por essa experiência ao ponto de não podermos focar nas outras coisas que nos ocorrem, também eu me vejo tomado pelos problemas que afligem as pessoas que me buscam, e me ponho a resolvê-los com elas. Mas ocorre que nisso as perco, as pessoas. Me lembro de uma dessas histórias Zen que ouvi uma vez: uma pessoa aponta para a lua, para mostrá-la a uma outra. Essa outra pessoa, querendo ver a lua, observa atentamente o dedo apontado. Não vê nem lua nem dedo. Isso porque, ao não olhar o céu, mas a mão que aponta, perde o brilho da lua; e ao julgar que, vendo um dedo, está vendo a lua; perde também a experiência do dedo que aponta.

Ao fazer o que faço, tenho a oportunidade de estar com outras pessoas de uma forma autêntica, em uma conexão genuína, caminhando junto essa bela e perigosa estrada da vida humana, acompanhando-as no processo de aprender a escutar a própria experiência, da mesma forma como eu mesmo aprendo a cada momento. Cada pessoa que se senta diante de mim a compartilhar suas vivências traz consigo uma amostra única das infinitas possibilidades de existir como humano. E não me parece sensato reduzir isso a um conjunto de problemas logicamente formulados a resolver, assim como não parece sensato procurar a lua na ponta de um dedo. Penso que precisamos, sim, do dedo que aponta; assim também precisamos, sim, de ajuda para solucionar nossos problemas, eu e os que me buscam. Mas penso também que só faz sentido atentar para esse dedo que aponta, se for para, a partir dele, direcionarmos nossa mirada à lua.

Assim, aqui de onde estou agora, me vejo sendo também um terapeuta um pouco diferente daquele dos consertos. Faz parte ainda do meu dia-a-dia ajudar meu cliente com a solução de seus problemas, mas somente na medida em que isso o ajude a entrar mais em contato com a própria experiência de ser quem ele é. Não me oponho a ajudá-lo a solucionar seus problemas, mas me recuso a reduzir minha prática à de um consertador de máquinas estragadas. Nada contra o conserto em si, é só que a mim parece que não me cai bem. Para que quero ser terapeuta, então?

Hoje, me cabe essa resposta: porque é o jeito como consigo viver de acordo com o amor profundo e radical que tenho pela vida que se dá a ver em cada pessoa com quem trabalho, em cada momento, e ajudá-la a viver uma vida que ame também. A cada encontro com meus clientes, busco convidá-los a apontarmos para o céu e aprendermos juntos a transitar o foco entre o dedo que aponta a lua e a própria lua, o sol e as estrelas. Para mim, a psicoterapia pode ser entendida como um contexto especial no qual podemos desenvolver a habilidade de observar nossa própria experiência de maneira flexível. Uma habilidade que nos permite, ao longo da caminhada da vida, transitar nossa atenção conforme nos parecer útil, ora fitando nossas metas, ora o caminho que trilhamos ou a paisagem ao redor, ou ainda atentando à própria experiência de caminhar. Trata-se de aprender a chegar aonde queremos, sim; de resolver nossos problemas, sim, mas sem perder de vista o encontro com nós mesmos, isto é, com a instância a partir da qual podemos nos observar querendo o que queremos, sofrendo o que sofremos, e amando o que amamos.

 

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Sobre o Autor
Lucas A Schuster de Souza

2 comentários em “Sou terapeuta por quê? Entre a lua e o dedo que aponta”

  1. Oi Lucas. Parabéns pela escrita do texto e obrigada por traduzir os meus sentimentos na clinica terapêutica. É no encontro das humanidades q a mágica acontece.

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