Sobre estar aqui

Parte 1:

“Papai tá aqui”, minha filha me diz, na sua vozinha de algodão doce e em um tom tão gentil e amoroso que só uma criança de 20 meses consegue ter, enquanto bate suavemente a mãozinha nas minhas costas em um gesto de carinho. Ela parece tranquila, feliz. Nessa que parece ser uma experiência de contentamento sereno, ela me contagia. Refletindo sobre esse momento, me dou conta de que esse estar aqui é algo tão simples, tão banal, mas que na grande maioria dos momentos do meu dia não é tão fácil de fazer. Percebo o quão rara é essa experiência de contentamento por só estar que vivenciei naquele instante. Noto quantas das dez mil atividades que preenchem meu dia são tentativas de acessar essa experiência, mas que não produzem o resultado tão maravilhoso que só estar ali produziu. O que há nesse estar ali que faz dele tão eficaz em produzir felicidade para ela e para mim? 

O mindfulness pode ser definido como uma qualidade de presença, isto é, um jeito de estar aqui. Esse modo de estar aqui é focado no agora, e tem como características o não se ater a julgamentos e a manutenção de uma atitude de abertura às experiências que ocorrem momento a momento. É um jeito de estar aqui para o que está aqui, agora, e durante toda a sucessão de agoras que faz nossa experiência da vida. Não é uma qualidade de presença que estamos habituados a cultivar no cotidiano, e não é fácil cultivá-la sem a presença de estímulos externos que nos lembram de voltar para cá, de sintonizar com o agora, de novo e de novo. Precisamos de algo que nos chame de volta toda vez que vamos para ontem, para amanhã, para longe de agora; ou vamos para lá, para ali, para fora daqui. Minha filha consegue ser um estímulo desses, às vezes. Quando me lembro que ela cresce rápido; que a cada dia ela tem truques novos para me mostrar; que a cada dia vai combinar uma palavra com outra de um jeito diferente, ela me faz lembrar que não quero perder um instante, que quero estar aqui, não longe. E quando ela me lembra disso, eu paro, eu fico aqui com ela, eu a vejo e deixo que me veja. Interagimos neste instante e nesse espaço que estamos habitando juntos, inteiros, e isso produz a experiência de conexão que associo à felicidade. 

Passados alguns instantes, as dez mil coisas me chamam de volta para longe daqui, para fora do agora, e junto delas me vou. Às vezes, cruzo com os olhos dela. Às vezes, num encontro no corredor entre a coisa 8999 e a coisa 9000, um abraço me traz de volta: papai tá aqui. Contentamento, conexão, trocamos, habitamos o instante juntos. Mas logo em seguida… coisa 9000, coisa 9001 e assim em diante… Há algo que percebo, no entanto, e que não percebo sozinho: quando, entre a coisa 8500 e a coisa 8501, intencionalmente dedico alguns instantes para tentar estar aqui comigo só, ou para estar aqui com o som do passarinho da rua, ou com a sensação do teclado na ponta dos dedos e os sons que saem desse encontro entre dedos e teclas; quando reservo esse momentinho para estar presente com outras coisas da minha experiência, depois parece ficar mais fácil estar com minha filha naquela qualidade de presença. E não só com ela. Também fica mais fácil estar aqui com minha esposa, e com meus pais, amigos, pacientes e com desconhecidos na rua. E não só fica mais fácil estar aqui, fica mais fácil saber com quem quero estar e o que quero fazer para construir felicidade para mim e para aqueles que ali estão também. 

O que percebemos, eu e os estudiosos do mindfulness como ferramenta terapêutica, é que ao treinar essa habilidade em momentos que não são aqueles que mais valorizamos, mesmo nos mais banais, nos tornamos mais aptos a experimentar a felicidade que aqueles momentos especiais nos propiciam.

 

Parte 2:

“Não! Não! Não!” Ela chora, grita, esperneia. Quer a mamãe e só a mamãe, mas a mamãe não pode agora. Meus dentes querem se forçar um contra o outro, meus ombros se tensionam e me sinto irritado, mas percebo que não é com ela. Em perceber a irritação e a incompatibilidade com o que precisamos neste momento, minha filha e eu, não ajo nessa irritação. Peço aos meus dentes que se afastem, aos meus músculos tensos que se soltem, aos meus braços e mãos que se abram. Convido minha atitude a passar de rejeição a abertura. Em vez de seguir o impulso de me fechar, me abro ao instante e contemplo a explosão de raiva dela e a acolho e protejo com gentileza e respeito. Longos minutos passam nessa dança entre minha raiva e minha aceitação. Longos minutos em que que tento estar presente. Cambaleante, tento não me deixar arrastar pelos fluxos de raiva e vontade de desistir, pelo cansaço ou pelas torrentes de julgamentos de “não deveria ser assim” ou “não gosto disso” e afins. 

Passados os longos minutos, tudo se acalma e um abraço vem, com um suspiro. A raiva deu lugar ao sono e à busca pelo conforto de um abraço. Papai tá aqui, ela diz. Sim, estive aqui desde o início, e por isso consigo agora estar aqui. Não é sempre, mas dessa vez consegui. Ela dorme no meu braço. Relaxo, sem esforço.

O mindfulness não precisa se restringir às experiências de alegria ou às coisas neutras como olhar as nuvens passarem ou sentir o ar nas narinas. Não teria sentido se restringir a isso se não é só disso que é feita a vida. Mais uma vez, tem algo que não constato sozinho mas com a comunidade de clínicos e cientistas que estudam o mindfulness como estratégia de regulação emocional: quanto mais pratico, mais apto eu me torno a me conectar e fazer o que importa nos momentos em que a oportunidade surge. Fazer o que importa é agir no impulso quando ele é útil, e é também buscar caminhos alternativos quando o impulso não é útil. É lidar com a realidade da melhor possível forma para manifestar os valores que nos são importantes. E para fazer o que importa, é fundamental ser capaz de estar consciente e atento, mesmo quando a dor ou o desconforto dominam a experiência. 

Mais uma vez, o treino com as coisas banais me serve, mas não só as neutras ou agradáveis. O treino de estar presente com o desconforto banal de esperar em uma longa fila, de sentir a água gelada do banho pela manhã sem imediatamente mudar as coisas em busca de alívio me ajuda a desfazer o automatismo da resposta de me fechar ao que parece ruim. O treino de me colocar consciente e aberto quando o barulho da obra não para de pressionar os ouvidos me ajuda a achar liberdade de escolha mesmo quando meus músculos querem correr, brigar ou congelar. É claro que não posso prometer que vá funcionar assim para todo mundo. Mas a experiência clínica diz que ajuda, na maioria das vezes; e as teorias sustentam que há coerência e lógica nessa interpretação da experiência, sustentando ainda que é possível desenvolver ferramentas terapêuticas que facilitam a aplicação desse raciocínio. Isso é parte do que nós terapeutas comportamentais contextuais fazemos na clínica e em nossas vidas pessoais: estar aqui e ajudar quem nos procura a estar aqui.

 

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Sobre o Autor
Lucas A Schuster de Souza

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