Sobre as caixinhas em que as nossas mentes colocam a nós, nossas histórias e as mulheres das nossas vidas

Tenho uma filha de 3 anos e meio para quem leio desde bebê, e uma sobrinha de 15 anos a quem presenteei com muitos livros, mas hoje quero priorizar um deles e as reflexões que a repercussão da sua leitura nos últimos meses trouxe na vida de 3 gerações de mulheres da minha família. Chama-se “365 histórias” – um livro ilustrado com os principais clássicos infantis, que devo ter dado para minha sobrinha em algum dia das crianças quando aprendeu a ler. Este livro voltou para minha casa este ano, como presente da prima maior para a menor.

 

Todas as noites lemos histórias para a Júlia, e geralmente ela escolhe os livros que quer que leiamos para ela. “Leia” ela diz. Eu sorrio escutando o que parece uma “ordem” com português bem conjugado e entendo que ela aprendeu a falar assim por me escutar “que livro quer que a mãe leia?”.  Em geral, permanece no mesmo livro por várias noites seguidas, depois varia, volta…. 

 

Voltando ao livro “365 histórias – os mais belos clássicos infantis”, tem sido o mais frequentemente escolhido por ela desde que veio “morar aqui em casa”. Uma bela noite, após ler várias histórias (Os três porquinhos, A Branca de Neve, a Bela Adormecida, Cinderela, Rapunzel e outros clássicos), a pequena Júlia, de apenas 3 anos e meio me olha e diz “mamãe, todas as meninas são princesas, e todas as velhinhas são bruxas”. Eu digo “verdade, filha, nessas histórias todas as meninas são princesas e todas as velhinhas são bruxas”. 

 

Paralelamente a isso, minha pequena começou a fazer cara feia para a vovó Rosi ao que eu rapidamente liguei: será? será que ela está achando que minha mãe, que para mim é uma linda e elegante mulher no alto dos seus 77 anos, para ela é  “uma velhinha”.. será que ela derivou então que minha mãe é uma bruxa? Fiquei pensativa e na sequência, a caminho da casa da vó ela disse que não queria ir lá e quando perguntei porque ela disse “a vovó é uma velhinha”. Ao mesmo tempo em que fico orgulhosa pelo seu belo desenvolvimento da linguagem, capacidade de raciocínio lógico e de derivação, fico também reflexiva frente ao “nascimento do sofrimento sujo”. 

 

Nas terapias contextuais, faz-se uma distinção entre “sofrimento limpo” e “sujo”. O sofrimento limpo é o que é, como os fatos em si, os fatos que não podemos mudar. Quando alguém morre, vamos sofrer com a perda, vai doer, e isto faz parte da vida, é o sofrimento limpo. O sujo seria frente a perda desta pessoa a nossa mente produzir pensamentos como “mas como isso aconteceu? é inadmissível! Eu deveria ter feito algo diferente… a culpa é minha,..não é justo!! Isso não poderia ter acontecido com ele, comigo…” enfim, aquelas produções mentais que ficam em “cabo de guerra” com os fatos e que não podem mudar os fatos, apenas nos atrapalham na aceitação e manejo emocional da realidade deles. 

 

Voltando para minha pequena, fiquei pensando em como desde que veio ao mundo já experimentou sensações que foram vividas com desconforto  / sofrimento como por exemplo, fome, fralda cheia, dor de barriga, febre, sono… experiências que geram incômodo e frente às quais os bebês choram e logo aprendem que assim são atendidos. 

 

Quando pensei que a Júlia partiu de “Todas as velhinhas são bruxas – A vovó é uma velhinha – –  Então a vovó é uma bruxa” e que poderia então estar derivando conclusões, eu me deparei com o suposto “nascimento” de um novo tipo de sofrimento para ela a que todos nós humanos, portadores de linguagem verbal vivemos com: o sofrimento derivado da linguagem, que tanto a RFT (teoria dos quadros relacionais) quanto a ACT (Terapia de Aceitação e Compromisso) tão bem descrevem. 

 

Outro dia ela disse:

“Vamos trocar o olho e colocar um olho azul, mamãe”. 

 “A Elsa, princesa do gelo não come”.

“A Moana não dorme”

Talvez ela só estivesse me descrevendo o que ela vê nos filmes das princesas, mas a minha mente já derivou e já temeu… que aprendizagens estes filmes estão trazendo?

 

E eu prontamente me vi tentando mostrar que o contexto importa dizendo para ela “a princesa Elsa come sim.. no filme não aparece ela comendo, aparece ela fazendo outras coisas… mas as princesas comem sim..lembra da princesa Ana comendo chocolate? As princesas precisam de energia das comidinhas para fazer qualquer coisa, que nem a gente precisa de energia para brincar, ler, pra tudo… e a Moana dorme, claro, ela descansa como todo mundo, mas no filme não aparece ela dormindo…”

Fiquei, então, reflexiva sobre o que as histórias nos ensinam e ensinam às nossas crianças. Me sinto, como mãe, psicóloga e professora, responsável por não reproduzir estas histórias como verdades ou como regras. São recortes, contos que nasceram em contextos históricos específicos, adaptados a momentos específicos da sociedade.

Que bom que existem princesas agora que não usam vestidos, não são loiras, não tem olhos azuis…que lembremos que as bruxas não são necessariamente do mal, e que as velhinhas podem ser lindas e doces, não apenas envenenar as princesas. Que nós e nossas crianças possam ter uma mente mais flexível, possamos olhar a nós e ao mundo com perspectiva e sem julgamentos e saibamos o valor do que realmente importa. 

Deixo sugestões de leituras para maiores informações sobre as teorias citadas:

PEREZ, William F. et al. Introdução à Teoria das Molduras Relacionais (Relational Frame Theory): principais conceitos, achados experimentais e possibilidades de aplicação.Perspectivas [online]. 2013, vol.4, n.1 [citado  2025-06-02], pp.33-51. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-35482013000100005&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 2177-3548.

 

de Moraes, G. J., Assaz, D. A., & Oshiro, C. K. B. (2023). Teoria das Molduras Relacionais (RFT): Apresentação para analistas do comportamento. Revista Brasileira De Terapia Comportamental E Cognitiva, 25(1), 1–21. https://doi.org/10.31505/rbtcc.v25i1.1745

 

Bim, N. R.;Almeida, João. H. Como a Teoria das Molduras Relacionais (RFT) Transforma a Clínica Comportamental – Estratégias Recentes para Aplicação. Revista Perspectivas 2019 vol. 10 n 02 pp. 294-304. 


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Sobre o Autor
Martha Wallig Brusius Ludwig
Martha Wallig Brusius Ludwig CRP 07/13821 Psicóloga graduada pela Pucrs. Atua como psicoterapeuta individual na clínica há 15 anos. Trabalha com capacitação e supervisão de profissionais da saúde (nutrição, enfermagem, psicologia) para melhorar motivação e adesão a novos comportamentos, assim como com orientação de grupos de treino de pais. Atuação com grupos interdisciplinares de mudança do e... ver mais

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