Uma boa notícia: cuidar de si deixou de ser uma coisa feia e vergonhosa e se tornou uma coisa bonita. Os estudos mostram aumento de performance no trabalho, qualidade de vida e longevidade. Os influenciadores digitais falam sobre isso. Está na moda, e isso é bom.
Tudo tem um lado bom e um lado ruim.
Às vezes a gente escuta um papo um pouco diferente. Hoje desmarquei compromissos importantes para focar no autocuidado. Não fui naquela reunião por causa do autocuidado. Comi três caixas de bis, eu mereço esse autocuidado. Não dei atenção para meu parceiro, fiquei assistindo Stranger Things: O Retorno dos que Não Foram a tarde inteira, inclusive madrugada adentro: autocuidado.
Por favor, não entenda que estou falando mal de autocuidado. Não estou, não seria sequer capaz disso. Inclusive sou fã.
O problema é delimitar o que é autocuidado, e o que não é.
Talvez começando pelo que não é…
Autocuidado não te mete em apuros depois.
Autocuidado não sobrecarrega os outros.
Autocuidado não prejudica sua saúde.
Autocuidado não faz uso de substâncias ilícitas.
Autocuidado não inclui sedentarismo, privação de sono, privação de nutrientes apropriados.
Autocuidado não inclui passar duas horas escolhendo o vídeo pornográfico perfeito, queimar dinheiro numa mesa de jogo ou em vidas extras para o jogo de celular*.
*claro, a não ser que de modo deliberado, controlado e dentro de um orçamento – nada contra jogos.
Nem sempre, todavia, é tão fácil assim delimitar autocuidado de autoleniência, e preservação dos hábitos saudáveis com um exagerado estoicismo.
Existem ferramentas – questões de auto-investigação – que podem nos ajudar com essa tarefa. Exemplifico a seguir em tópicos:
Evitação Experiencial
Pergunte-se: esse autocuidado está me deixando mais conectado aos meus valores? Ao momento presente? Estou me sentindo conectado com minha própria vida? Com a pessoa que quero ser?
Necessidades Emocionais
Pergunte-se: que necessidade emocional estou atendendo? Caso seja a necessidade de espairecer, por exemplo, que maneiras posso fazer isso? Olhar a função sempre é melhor que olhar a forma como a necessidade se apresenta. Dar uma volta em uma praça, respirar ar puro e ler poesias no sol atendem de maneira mais saudável essa demanda que ficar torto no escuro vendo uma série cheia de poluição mental. Busque a função, busque a necessidade emocional.
Mente Sábia
De maneira mais simples e direta, a Terapia Comportamental Dialética nos fornece uma ferramenta de intuição que pode ajudar a refletir, se estivermos dispostos a apenas ouvir nossa própria sabedoria inata. Feche os olhos. Inspire lentamente, se perguntando: “Mente sábia, esse comportamento é autocuidado?”. Depois expire lentamente, apenas ouvindo. Não tente pensar ou criar a resposta. Apenas escute sua própria sabedoria.
Sustentabilidade
Pergunte-se: “Eu poderia fazer isso todos os dias?”. Autocuidado pode começar como uma pequena saída, uma rebeldia saudável contra hábitos tóxicos e situações nocivas. Mas, em última instância, deve tornar-se um hábito e parte do nosso estilo de vida. Se comer três caixas de bis por dia te fazem mal, fazer isso hoje não é nenhum tipo de pecado, mas não é uma solução. Ter hábitos saudáveis, nutrição adequada, momentos de leitura e lazer, se comprometer a melhorar o ambiente de trabalho, dividir as tarefas de modo a não sobrecarregar ninguém (principalmente a nós mesmos) são atendidos como um grande “SIM!” quando confrontados à pergunta realizada.
Autocuidado não é se tratar como uma lata de lixo das conquistas que tivemos até agora. É fazer a manutenção para podermos seguir conquistando para nós e para a comunidade que nos cerca. É o amor, o mesmo amor que distribuímos ao fazer nosso trabalho com carinho, mas direcionado para si. E quando o amor é direcionado para dentro E para fora, dentro e fora deixam de fazer sentido, nos tornamos parte integral do nosso contexto. Assim, vivemos plenamente nossos valores, presentes e participativos, e toleramos melhor a dor, a frustração e a tristeza. Sem ter que fugir.
Perfeito
Obrigado!