Sou totalmente fã de uma abordagem dita comportamental contextual chamada Terapia de Aceitação e Compromisso (Acceptance and Commitment Therapy – ACT). Essa abordagem é relacionada com uma teoria chamada Teoria das Molduras Relacionais (Relational Frame Theory- RFT). Pessoalmente, eu não gosto muito da tradução de frame para moldura, acho que prefiro marco, todavia aceitei (wink wink) essa escolha. Essa teoria muito bonita é um modelo de linguagem, cognição e simbologia para as abordagens comportamentais. Não existe, claro, sem suas críticas e polêmicas, pois afinal é ciência e não algum tipo de dogma. Ainda assim, tem alto valor para prever e influenciar alguns fenômenos, e um bom número de trabalhos experimentais que evidenciam suas propostas.
Essa teoria preconiza, dentre outras coisas, que existem as ditas molduras, que são como que determinadores da relação entre palavras. Por exemplo, a moldura de coordenação representa que essas palavras têm algum tipo de equivalência. Essa foi a primeira evidenciada em treinos de laboratório, onde a pessoa seria treinada que o estímulo A (por exemplo, o som “gato”) era equivalente a um estímulo B (respectivamente o desenho de um gato), e depois que o estímulo B era equivalente a um estímulo C (a palavra escrita gato). Sem nenhum treino extra (o que não acontece em animais não-humanos), o participante deriva que estímulo A é equivalente ao estímulo C.
Existem diversas outras molduras que não a de coordenação, como causalidade (A é causa de B, como a mãe é causa do bebê), distinção (A é diferente de B, como um gato é diferente de um cachorro), oposição (A é o contrário de B, como um gremista é o contrário de um colorado), hierarquia (A é um tipo de B, como uma banana é um tipo de fruta), entre outros. Uma dessas molduras, e muito característica da ACT – especificamente quando se trabalha um trabalho de perspectiva, mas presente a todo momento – é a moldura dêitica.
Quando fui ler sobre esse assunto a primeira vez, confesso, eu não conhecia essa palavra. E eu conheço um bom número de palavras!
Assim, depois de dar uma olhada nos manuais e alguns exemplos, quis ir ao dicionário, que simplificou um pouco a minha jornada. Ali, aprendi que dêitico diz respeito a um tipo de expressão que depende do contexto, do interlocutor. Por exemplo, se eu digo “João está na confeitaria Princesa, na rua dos Andradas número 1812”, a informação necessária está contida na frase. Se eu digo “João está aqui”, não é possível saber. O valor guardado dentro da palavra “aqui” muda a cada “aqui” possível no universo. “Mãe, me compra esse brinquedo?”, solicita a criança manhosa. “Depois”, diz a mãe versada em RFT, podendo adiar esse momento infinitamente. Talvez “Depois” seja pior ainda, porque nunca chega. Quando chega, a palavra não serve mais, e “agora” se torna o melhor descritor.
Armado dessa definição verbal, entendi um pouquinho melhor o que significava a definição da moldura de relação dêitica, que em geral é elaborada: “eu/aqui/agora ou ele/lá/depois”. Claro que o “depois” pode ser “antes”, e o “ele” pode ser “elas”. Vamos nos ater ao espírito da coisa. Assim, quando digo “eu vim aqui antes”, por exemplo, existe uma questão de uma não-concretitude no sentido da moldura. Quando eu falo de outras molduras, em geral é possível ter algum tipo de contraponto. Se A é menor que B, então B é maior que A. Por exemplo, uma formiga é menor que um elefante. E um elefante, por sua vez, é maior que uma formiga! Mas e se Alessandra vê sua amiga Camila em uma festa, e manda uma mensagem para sua amiga em comum Renata descrevendo isso, o que ela diz? Talvez ela diga “Eu estou aqui e ela está lá”. E se Camila pensa em mandar uma mensagem para Renata descrevendo a mesma cena, o que ela fala? Possivelmente a fala é idêntica! Não existe um contraponto formal não-arbitrário. A palavra não muda, o que muda é o contexto.
Treinos usando essa moldura na pesquisa podem, usando exemplos clássicos, mostrar uma semente e uma flor, e fazer perguntas como “o que é antes e o que é depois?”, ou, aumentando a complexidade, “se antes fosse depois e depois fosse antes, o que seria antes?”. Esse tipo de exercício parece aumentar em algum grau a capacidade de tomada de perspectiva. Em um estudo com pacientes psicóticos também foi possível ter um grau razoável de identificação dos pacientes por tipos de respostas específicos a questões da moldura dêitica que enfatizam as características da população, como “eu penso que as pessoas são seguras e você pensa que as pessoas são perigosas. O que você pensa que as outras pessoas são?”, por exemplo.
E o que esse monte de teoria da linguagem tem a ver com a clínica? Ora, se podemos usar esse tipo de comunicação para aumentar a capacidade de tomada de perspectiva, o quanto isso não pode beneficiar alguém? Alguns exemplos bem simples:
Eu conto uma briga que tive com minha namorada, e você me pergunta “E o que ela estava vendo e ouvindo de você naquele momento?”, e “como é pensar sobre aquilo que estava acontecendo naquele momento, agora?”, ou talvez “se você fosse ela, o que você gostaria de ouvir para responder dessa maneira que ele – no caso você – esperava?” – Esse tipo de intervenção pode trabalhar empatia e melhorar relações.
Ele me conta de um homem casado que o procura quando visita a cidade, e me pergunta “Ele acha que eu sou amante dele?”, ao que posso perguntar “Se você fosse amante dele, como seria a relação de vocês?”, ou “Se você fosse ele e quisesse um amante, como trataria o rapaz que você encontra quando viaja até Porto Alegre?”. Essas alternativas podem, além de alteridade, também buscar uma promoção de autorrespeito, ao parar de imaginar como gostaria que as coisas fossem e se deflagrar – e aceitar – como de fato são.
É uma ferramenta clínica da relação terapêutica também. Talvez se um terapeuta se perguntar “Se eu fosse o paciente, com sua história de vida, com a situação presente, como eu me comportaria nessa situação específica?” – e, pasme, se a resposta não for algo como “acho que responderia dessa maneira que o paciente respondeu”, talvez o terapeuta não esteja de fato entendendo bem o caso…
Alguns exercícios do psicodrama que trabalham esse tipo de relação podem ser ‘incorporados’ como estratégia do dêitico. Por exemplo, estou conversando com o paciente, e digo “imagine que você é você, e está discutindo com sua mãe, e eu vou tentar fazer o papel de sua mãe”. Então lá estamos, eu imitando a mãe e o paciente bastante fusionado com sua perspectiva, tentando me convencer que usar maconha afinal de contas não é uma coisa tão problemática assim. Subitamente, eu digo “Troca!” e passo a responder como se fosse ele, e ele tem que responder como se fosse sua mãe. É muito provável que, nas primeiras tentativas, ele se deixe convencer muito facilmente daquilo que ele gostaria que a mãe fosse convencida. Isso não deve desmotivar o terapeuta, que sabe que o treino começa aos poucos. Mas pode apontar esse fato, principalmente se tiver um bom vínculo terapêutico. E aos poucos essa capacidade vai se ampliar. Assim, o terapeuta não precisa entrar no mérito de muitas questões de maneira direta, esquivando-se de debater “conteúdo”, mas entrando muito profundamente nas relações e ampliando muito a capacidade do paciente de pensar, ao mesmo tempo, “eu” e “elu”, “aqui” e “lá” e “aqui” e “então”.
E, em última instância, ter uma câmera que pode transicionar entre tantos pontos de vista facilita muito o treino dito como “self-como-contexto”. Mas isso é assunto para outro dia.
Espero que você, onde e quando estiver em uma situação em que seja útil, lembre-se desse texto que foi escrito por mim, aqui e agora, para ajudar.